30/10/07

COMISSÃO DE ESTÉTICA URBANA

A Comissão de Estética da Câmara Municipal da Beira, organismo de carácter consultivo, adjunto à Presidência do Município, destinado a apreciar os projectos das novas construções, tem a seguinte constituição para o primeiro semestre de 1957:

- Vereador sr. Américo de Matos Ferrão;

- Vereador sr. Joaquim Raimundo Lourenço;

- Chefe da Repartição Técnica do Município, sr. Engº José Augusto Fragoso de Sousa;

- Chefe da Repartição do Foral do Município, sr. engº Amílcar da Silva Cruz;

- Engº civil, sr. Joaquim de Oliveira Ribeiro Alegre;

- Arquitecto, sr. João Afonso Garizo do Carmo;

- Arquitecto, sr. Carlos Ivo;

- Agente Técnico de Engenharia, sr. Ruy d’Espiney.

A referida Comissão de Estética, com a sua actual constituição, e presidida pelo sr. Comandante Soares Perdigão, teve a sua primeira reunião do corrente exercício em 7 do corrente.

[Diário de Moçambique, Beira, 11 de Janeiro de 1957, p. 5]

19/10/07

Crónicas de José Cardoso (7)

Era conhecida a capacidade comprovada da Beira, para mobilizar os seus citadinos em manifestações de repúdio e desagravo a atitudes de injustiça e prepotência.
O aumento dos preços dos bilhetes de ingresso aos cinemas, sem aviso prévio e justificação razoável, foi motivo mais do que suficiente, para ferir a dignidade de toda a população branca, que era a que frequentava os cinemas por razões discriminatórias, ou de grande parte dela, e levá-la a manifestar-se.
Perante a recusa arrogante dos proprietários em reconsiderar a sua decisão, a 1 de Setembro de 1966, a população da cidade manifestou-se e “decretou” uma greve geral aos cinemas, que se manteria por cerca de um ano. Até a “Gillete”, figura emblemática da cidade e conhecida como a cinéfila nº1, que não perdia uma estreia, aderiu ao movimento, solidarizando-se com a vontade da maioria. (refira-se que o epíteto desta velha e extravagante senhora, pelos seus “folclóricos” trajes e exuberantes cosméticas, se devia a ser esposa do Gil, mecânico dentista muito conhecido na praça, não tanto pelas suas qualidades profissionais que constava serem excelentes, mas por ser marido de quem era, e demonstrar uma tranquila tolerância com as excentricidades da esposa.)
A manifestação decorria de forma pacífica, sendo essa a orientação aconselhada nos inúmeros panfletos que foram distribuídos por toda a cidade e a prová-lo, estavam a presença no meio da multidão, de mulheres grávidas e de crianças.
Este movimento pacifista de protesto, viria a transformar-se numa “batalha campal” com alguma violência, quando os “cinzentos” - uma espécie de polícia anti-motim, vinda apressadamente de Lourenço Marques, com cães de guerra a acompanhá-los – irromperam contra aquela enorme massa humana, que lutava apenas com arremessos de palavras, provocando-a e distribuindo chambocadas sem olhar a quem.
Esta e outras imagens de igual violência, teriam inspirado o meu amigo e poeta beirense Heliomotor Baptista, quando, alguns anos mais tarde, escrevia em “Por Cima de Toda a Folha”: “ Oh, as palavras. A semente delas. A colheita vindoura/ sem capatazes de chamboco no ar.”
As pessoas não se intimidaram, porque os tempos do medo eram páginas já passadas, e à violência responderam com violência, batendo a quem batia, partindo vidros e destruindo cadeiras. Ninguém poderia supor que aquela gente, tivesse tanta raiva acumulada e tanta energia guardada para os maus momentos.
É elucidativa a razão porque o átrio do cinema Nacional ficou parcialmente destruído, à excepção de uma vitrina, onde um cartaz anunciava para breve, o filme “TODOS CONTRA UM”. Metaforicamente TODOS, era a população da Beira e UM, a “Empresa de Cinemas da Beira”.
A teimosia desta empresa, e o desprezo que demonstrava ter pelos cidadãos que lhe davam tanto dinheiro a ganhar, levou-a a anunciar uma sessão para a noite seguinte no cinema “São Jorge”, já com os abusivos e polémicos preços. Uma provocação!...
Para lá se dirigiu a multidão, voltando ordeiramente a manifestar-se, na tentativa de boicotar a sessão, com esclarecimentos às poucas pessoas que se dirigiam à bilheteira, cerca de duas dezenas, e a maior parte delas oriundas da Rodésia, que ali passavam as suas férias.
E, mais uma vez. houve nova demonstração de força, levada a cabo pelos “cinzentos”, coadjuvados por agentes da polícia local. Houve quem tivesse visto inclusivamente, montar uma metralhadora no telhado do cinema, e a notícia ameaçadora espalhou-se como um rastilho de pólvora.
Os ânimos voltaram a aquecer, e outra ameaça, vinda dos “cinzentos”, caiu sobre a multidão: a de que, se os acontecimentos o justificassem, lançariam sobre eles a matilha de cães que os acompanhavam.
Perante o facto, que podia ou não consumar-se, em pouco tempo alguns citadinos municiaram-se com varapaus, tubos de chumbo, correntes de bicicleta e (louvada seja a capacidade inventiva do homem) um antídoto especial contra as investidas dos animais que, além de inédito, seria seguramente eficaz: - sacos com assanhados gatos, prontos a serem largados em debandada geral, arrastando consigo os seus ancestrais inimigos!...
A 3 de Setembro de 1966, publicava o “Diário de Moçambique” sob o título “À margem dos acontecimentos ocorridos na noite de ante ontem na Beira”: - “Não se pode pensar que aquilo que aconteceu na noite de 6ª feira frente ao cinema Nacional tenha sido a efectivação de algo preconcebido.
De forma nenhuma se pode admitir que as centenas de casais ali presentes, tenham levado os seus filhos, muitos deles de tenra idade, para uma confusão daquele género, se imaginassem o que viria a acontecer.
Acreditamos sem relutância que a população da Beira pretendeu apenas ordeiramente protestar contra o aumento dos preços dos bilhetes de cinema, baseando-se numa razão que lhes cabe de não compreenderem semelhante aumento.
A Empresa dos Cinemas da Beira, não veio, até hoje, explicar à população (que lhes dá o dinheiro a ganhar) a razão desse aumento, numa altura em que nada, mesmo nada de mais, lhes dá em contrapartida. A maioria dos filmes continua a ser de má qualidade; os ordenados dos empregados daquela empresa, não consta que tenham sido aumentados; os impostos, quando os há, são suportados pelos espectadores...”
E agora segue-se a gracinha de mau gosto ou a bajulação costumeira, que eu faço questão de reproduzir, embora soubesse que era um subterfúgio frequentemente utilizado, para desviar as atenções da censura, de outras referências de fundo mais importantes: “ E esta pacata população da Beira, que corresponde de boa maneira a todos os sacrifícios que o Governo pede, com a consciência de que tudo se deve fazer no sentido de ajudar Portugal na sua luta contra o inimigo, esta ordeira e laboriosa população reagiu, contra uma prepotência duma empresa que manobra protegida por um monopólio...”
Mas a laboriosa população não correspondeu ao “sacrifício” de satisfazer as exigências de uma empresa que era e sempre foi apadrinhada pelo Governo e reagiu, com a consciência de que tudo se deve fazer no sentido de contrariar as manobras dos seus verdadeiros inimigos.
Assim, após os acontecimentos relatados que levaram à greve geral que se prolongaria por cerca de um ano – a Beira tornava-se pródiga em episódios pouco comuns em território português, com direito a figurar nos registos da “Guinness” – a cidade mobilizou-se, subscrevendo durante esse tempo, as acções emitidas com vista à constituição de uma nova empresa e construção de outra sala de espectáculos, acabando assim com a prepotência vergonhosa de um monopólio, protegido pelas autoridades coloniais e protagonizado pelo Monteiro e Victor Gomes.
Não foi tarefa fácil porque os obstáculos criados pelas autoridades locais e centrais foram muitos, o poder dos favores e influências corruptas movimentaram-se, mas o movimento era imparável e significativo, muito forte e determinado, não havendo forma de o contrariar, embora o tivessem tentado.
E assim nasceu o “Novocine”, sobre as margens lodosas do Chiveve, como bastião da vontade de uma cidade que se dispôs a enfrentar e a sacudir do seu meio, alguns dos seus mais destacados “chupa sangue”.

In “Memorandos da Vida” III volume, a publicar de José Cardoso.

Ricardo Rangel

Cabe-me fazer a apresentação do Ricardo Rangel. Todos nós já o conhecermos como decano do foto-jornalismo em Moçambique e Director da Centro de Documentação e Formação Fotográfica, portanto o responsável por termos agora aqui na Beira esta notável exposição com fotografias da nossa urbe desde os seus primórdios até aos dias de hoje.
Mas talvez só poucos saibam porque é que ele tanto pugnou para que estivesse aqui na Beira este ano celebrando connosco o centenário da cidade. É que o Ricardo Rangel viveu cerca de 6 anos nesta cidade durante a década de 60, e, numa fase importante da sua vida, trabalhando para o Notícias da Beira e Diário de Moçambique. Este último jornal na altura sob a direcção do saudoso Dom Sebastião Soares de Resende, bispo da Beira.
Finalmente volto a citar as palavras que lhe dediquei, no III Festival Internacional de Música de Maputo, realizado em Abril, onde lhe foi prestada uma grande homenagem:
Quero dizer um pouco acerca do meu amigo Ricardo, porque falar do nosso decano da fotografia haverá muita gente mais abalizada para tal.
Muitas vezes em que o Ricardo está perante uma paisagem maravilhosa, um delicioso manjar ou um néctar dos deuses, telefona-me para como sua amiga, embora distante no espaço, compartilhar o seu prazer e felicidade do momento. Essa sua atitude lembra-me as palavras do saudoso poeta Vinicius de Morais: “Se alguma coisa me consome e me envelhece é que a roda furiosa da vida não me permite ter sempre a meu lado, morando comigo, andando comigo, falando comigo, vivendo comigo, todos os meus amigos,---“
A sua alegria de viver, o seu pedaço de perene juventude, reflecte-se no seu lema, que gosta sempre de repetir: “Cada dia é uma festa”. É assim, com este imenso amor à vida, o meu amigo Ricardo.
Vamos pois , hoje, aqui, festejarmos todos este momento com o Ricardo Rangel.
Maria Pinto de Sá

10/10/07

BEIRA - uma saudação

aBeira - te
e, olha-me nos olhos…

Não, não é só um jogo de sedução contigo, caro/a leitor/a.
Deixa-me, por agora, contornar a volúpia e confessar. Isto é mais um repto que outra coisa. Uma espécie de cobro que venho ajustar com a cidade centenária.
Contra meu desejo e, por um acaso, fiquei deste lado. Do lado atlântico da ponte. Do lado da ausência, e, onde não há festa, pá! (escuto Chico Buarque para aconchegar a nostalgia).
Quando cheguei à desconhecida cidade da Beira, em 1995, nada havia em mim de africano, a não ser uns colares e uns perfumes marroquinos. Eu era um exemplar irrepreensível de desconhecimento, uma moldura propícia para o futuro se desenhar, a seu belo prazer.
Cumpriu-se essa metáfora. O devir desenhava-se rapidamente na minha existência, a crosta da minha vida sofria todas as mutações.
Uma década de comparência de um ser humano num determinado ponto do planeta, faz desse ser uma espécie de ovni, no seu antípoda, ou na sua procedência. Bom, não será, necessariamente assim, mas, o que aqui importa, é que, a partir de então, eu passei a sentir-me assim. Um objecto estranho, no meu inverso geológico.
Simultaneamente, uma forma de desconcerto apoderava-se da placidez dos meus dias.
O confronto era, já, inevitável. Qual era o meu lado da ponte? Onde se situava o meu vínculo?
Sabemos que os elementos, as questões da nossa identidade humana são históricas e construídas. Não se trata, portanto, da reinvenção de uma pertença, mas antes a fundação de mais um pressuposta na minha entidade.
Mas, essa percepção não é, absolutamente, tranquilizante.
Acrescentar a minha individualidade faz de mim uma pessoa mais inquieta, mais impertinente. Como se verá pela ousadia da anunciada cobrança, da despudorada provocação.
William Dubois (um dos pais do pan-africanismo) perguntava-se, "que coisa era essa de que era mais capaz de sentir do que de explicar". Falava de um ancestral e duradoiro parentesco na longa duração da história de África. Que tecido matricial e intrínseco é esse que atravessa e mantém uma múltipla descendência comum africana? Coloco eu, do lado de uma menos sólida configuração ancestral europeia.
Vós sois mais africanos do que eu sou europeia.
E Dubois explica-se. O enlace íntimo, entre os africanos, a verdadeira essência do seu parentesco histórico "é a sua herança social de escravidão, de descriminação e de insulto". Essa herança une os filhos de África.
Um imenso e inesgotável cenário para o pensamento e para a reposição da memória, um passado singular que ajudará a povoar o futuro.
Uma simpatia que me envolve.
Quero entender como e porquê essa atracção me enreda, me tenta, sem retorno.
Todos contamos, ouvimos, inventamos estórias. Todos conhecemos os lugares comuns das palavras e a tranquilidade que os sentimentos ganham, nos espaços que menos reduzem a nossa humanidade.
Não é, tanto, esse o desafio.
O convite é para a compreensão daquela anuência histórica endógena, física e vital. Uma alma essencial e transversal à biografia africana, onde a Beira (Moçambique ) e seus povos se inscrevem, anteriormente às administrações coloniais terem inventado uma cidade no Aruângwa.
Uma permanência no espaço e no tempo…a da gentes tem mais de cem anos.
Beira, kuenda na kuenda…

ABeira-te, olha-me nos olhos e ajuda-me a compreender.

Enquanto isso e para a Festa, deixo-te, caro/a e tolerante leitor, estas belas palavras do poeta Octávio Paz.
Faz delas volúpia ou lucidez, tu decides…

Pressinto nos sonhos que não durmo
que estás ainda muito longe
onde fica o dia
em que tu vives
onde fica essa manhã
deslumbrada só de luz
só de música
só de ternura onde
podíamos acordar tu e eu.


Fernanda Queirós


PS Obrigado querida amiga pelo belo texto que enviaste para o blogue