23/12/07

Silva Dunduro

Veja a série completa no blog "Diário de um Sociólogo"


Arrozais da Beira - óleo / tela (60X70) 2007

Arrozais da Beira II- óleo / tela (60X70) 2007
Termino esta série dedicada a Silva Dunduro, pintor radicado na Beira, com dois quadros alusivos aos famosos e centenares arrozais situados na periferia da cidade, mundo feminino (focal na obra do pintor), mundo de luta diária pelo sustento, mundo também de luta contra aqueles que querem ocupar as suas terras. Leia o seu perfil artístico aqui. Os interessados em contactá-lo, poderão fazê-lo através do seguinte email: dundurocultura@yahoo.com.br E, finalmente, Silva, desejo-te boa sorte quando, em breve, fores tirar o mestrado em gestão de património cultural no Brasil. Foi para mim um prazer e uma honra situar-te aqui. Até breve, em próximo encontro na Beira ou não importa onde.
posted by Carlos Serra at 12/21/2007

13/12/07

O Elefante Branco


20 de Agosto de 2007. Movimento desusado na cidade da Beira, com bandeiras a drapejar ao vento e gambiarras de luzes multicoloridas a embelezar a Praça do Município; mais veículos e pedestres a circular nas vias, mais pobres do que o habitual, no indigno ofício de estender a mão, não à palmatória dos calabouços coloniais, mas aos seus semelhantes, sobretudo aos visitadores europeus, de quem esperavam uma maior compreensão e generosidade, para lhes mitigar as fomes e os ajudar a cobrir melhor os corpos, vestidos com os farrapos sujos do infortúnio e da vergonha.

Enquanto uns festejavam, outros rastejavam a sua indigna condição de vagabundos, de escória da sociedade, de números não incluídos nas presumidas estatísticas dos governantes, a não ser como irremediáveis e absolutos.

A cidade da Beira comemorava o seu centenário e para o brilho da festa, contribuíam dezenas de visitantes vindos da capital e de outras partes do país sem capital, em caravanas motorizadas ou de avião, como os que vieram da antiga metrópole colonial, todos numa romagem de saudade à terra que os viu nascer ou onde haviam vivido grande parte das suas vidas, quando ainda se acreditava e, por se acreditar, se dizia com convicção e orgulho, que a Beira era então “a cidade do futuro”.

Talvez ainda o seja, quem sabe?!.. Ela tem a faculdade de nos surpreender quando menos se espera!....

O povo anónimo que vivia marginalizado nas franjas pantanosas e insalubres dos núcleos favorecidos da urbe, marginalizava-se ele próprio das comemorações dos cem anos, uma medida de tempo que ignorava porque nada lhe dizia e porque conhecia a sua, a que media o curto e penoso tempo da sua vida de miséria e sofrimento.

Contrastes amargos de uma sociedade que, por ganância exacerbada de uns poucos, muitos sofrem de lenta mas irreversível decomposição física e moral.

Por isso o lixo orgânico acumulado nos edifícios, nas ruas e nas praças, amalgamado com os estercos sórdidos de mentalidades arrevesadas que infestam o ambiente de um cheiro a podre, repulsivo e nauseante.

Por isso as “pobrezas absolutas” como é vulgar dizer-se agora nos discursos políticos, em contraste com as grandes riquezas de que não se fala para que, declarando umas e omitindo outras, se possam encobrir com o manto dos equívocos demagógicos, as mais vulgarizadas.

Por isso os pés calçados com meias de seda e sapatos de marca, e os descalços, sujos de lama e deformados por tanto calcorrearem os caminhos da desesperança e pelas feridas purulentas da matacanha.

Por isso os palacetes de luxo e os casebres de lixo.

Por isso os abusos de um lado e a complacência secular do outro.

Por isso… merda para tudo isto, apetece-me dizer num desabafo obsceno, mas tal não digo, porque a ocasião é de enganos e de festa.

Eu e a Laura, minha mulher, como tantos outros, metemo-nos no avião e desembarcámos no antigo aeroporto internacional “Sacadura Cabral” situado na Manga, para estarmos presentes na festa como nos competia; ela, porque era natural da Beira e eu, porque foi nela que me fiz homem e onde aprendi a respeitá-la e a respeitar-me, respeitando os outros.

Visitámos os lugares onde havíamos vivido e lembrámos outros, com um misto de nostalgia e tristeza, por estar patente a nossos olhos que, tal como ontem, no tempo da discriminação do colonialismo branco, a Beira continuava abandonada como filha enjeitada, a ser desprezada e discriminada pelo colonialismo preto.

Não se investia nela, resultando dessa política segregacionista, a mais alta prevalência de HIV/Sida e os mais elevados índices de desemprego, este, agravado pela crise do vizinho Zimbabué, do ditador e paranóico Mugabe, que deixou de produzir excedentes quando expulsou os fazendeiros brancos para, de bandeja, entregar as fazendas a amigalhaços do seu governo e a militares da sua confiança, como prémio pelos seus favores servis e sabujices. O resultado, porque de agricultores não tinham nada e porque culturalmente e por razões objectivas de subdesenvolvimento, estavam habituados a produzir nas machambas familiares de subsistência, o descalabro aconteceu. Por tais motivos e por outros mais obscuros que não vem ao caso referir, mas também por incapacidade e ausência de conhecimentos, deixaram as grandes granjas produtivas ao abandono e, consequentemente, na falência.

Incapaz de produzir, o Zimbabué, não agravou as carências alimentares do seu povo como reduziu drasticamente as exportações e, como consequência, as importações do que carecia para o seu desenvolvimento, por não ter como as pagar.

O porto da Beira sofreu e ainda sofre dessa crise de má gestão e da política discriminatória do vizinho, e com ele a cidade, que sabia serem o porto e os caminhos-de-ferro, a sua alma e o seu sangue, a razão principal da sua existência.

A Beira começou por ser um porto de mar que, com pressas de urgência se fez cidade sem cuidados futuros, assentando praça em terrenos pantanosos para, de muito cedo, começar a viver dos serviços que prestava à Federação das Rodésias e Niassalândia e, mais tarde, em resultado dos ventos da história que sopraram forte e iniciaram as varreduras das colónias, aos libertados e soberanos Malawi e Zimbabué, que vieram substituir a referida Federação.

A partir dos anos 50, a Beira beneficiou por isso de um desenvolvimento rápido e invulgar, quer em número e importância dos prédios que então se construíram, quer no crescimento demográfico.

Como segunda cidade da colónia, esse rápido desenvolvimento passou a ser motivo de orgulho para os citadinos brancos que competiam com os “coca-colas” da capital, – assim chamados porque essa bebida era consumida apenas em Lourenço Marques – numa rivalidade bairrista que não deixava de ser salutar, tanto para uns como para outros, na medida em que os motivava para serem melhores: na política, na rebeldia, no desporto, no teatro, nas artes e na cultura em geral.

Dizia-se então que os beirenses tinham uma personalidade própria, muito vincada pela diferença de tratamento a que estavam sujeitas as duas cidades, pelos órgãos de decisão e soberania, estabelecidos nas capitais da colónia e do império que, sistemática e ostensivamente, renegavam a Beira e beneficiavam Lourenço Marques; que os beirenses eram mais livres e mais ousados, reflectindo-se esses predicados numa permanente rebeldia a tudo que lhes parecesse injusto e ate, no modernismo da sua arquitectura, nalguns casos injustificadamente arrojada para a época, sem estudos de sustentabilidade económica ou bases de apoio que pudessem viabilizar verdadeiros mastodontes como o “Grande Hotel”, com 12.000 m2, e orçado em dezenas de milhar de contos. Demasiada fruta para tão pouca parra. Sobretudo quando a fruta toma proporções absurdas por ambição desmedida de empresários paranóicos e sem visão sobre o presente e o futuro, como aconteceu com essa obra majestosa que, orçada no início em 35 milhões de escudos portugueses, derrapou, como modernamente se diz, fixando-se na escandalosa soma para o lugar e para a época, nos 90 milhões.

De tudo isto falávamos. Eu, a Laura e o Leonel, um velho amigo que encontrámos na esplanada do café “Capri” na Praça do Município e que, de tão surpreendido e satisfeito por ter deparado connosco ao fim de tantos anos, - quase trinta - abandonou a mesa onde estava com amigos e veio sentar-se à nossa.

É curioso e de certo modo imperdoável e injustificado, como deixamos decorrer os anos sem saber dos amigos nem tentar procurar saber deles, se continuavam vivos e onde, se tinham ficado no país ou sido contaminados pelo vírus da intolerância e do medo e se, por isso, tinham ou não alinhado no magote de retornados e rumado às origens, com pressas urgentes e precipitadas.

Curioso também era saber como e porquê, depois da independência, cada um de nós reduziu as suas relações à expressão mais simples, adaptando-as às conveniências dos perturbados momentos porque passámos e ainda passamos, como se, com essa atitude, pretendêssemos tornarmo-nos imunes a influências indesejáveis ou receássemos enfrentar o futuro.

Leonel falava por todos nós. Parecia querer recuperar o tempo perdido e pôr em dia tudo o que havia ficado por dizer. Maltratava as palavras na urgência de as dizer, mas sorria sempre, como se a nossa presença lhe tivesse dado certezas quanto às opções que tomara e confiança, apesar de tudo, no bom senso e inteligência dos homens. Espraiando os olhos brilhantes de satisfação pela praça movimentada, atropelava as ideias mas insistia:

tal como vos digo meus amigos. Se a Beira alguma vez deixou de ser a cidade do futuro, jamais deixará de ser a minha cidade. Como nós dizíamos antigamente: o cheirinho do Chiveve introduz-se-nos nas veias e alimenta-nos a alma. Não é possível livrarmo-nos da influência que têm esses cheiros a maresia podre sobre o nosso carácter e as nossas vidas, a partir do momento em que a pituitária de cada um de nós os aspirou pela primeira vez.

-Talvez seja essa uma das razões porque estamos aqui hoje – disse-lhe eu para evitar que se apropriasse da conversa e nos colocasse na prateleira como meros escutantes, - foram os festejos que nos motivaram mas também uma boa dose de nostalgia…

compreensível – disse Leonel, - o que me admira é que levassem tanto tempo a visitar-nos. – Procurando com o olhar o empregado que nos tinha servido antes, chamou-o e encomendou:

-Traga mais dois Whiskys e para mim uma cerveja… - e quando o criado se retirava acrescentou a tempo: - por favor, e meia dúzia de rissóis de camarão e outro tanto de chamuças bem picantes para servirem de lastro. – A seguir olhou para a Laura e delicadamente perguntou:

-A minha amiga toma mais um não é verdade?...

-Só se for muito fraquinho… não estou habituada a beber com regularidade… em dias de festa.

-Um dia não são dias e este é um dia especial. Comemoramos o dia da Beira e do nosso reencontro. É portanto o nosso dia, - referiu com entusiasmo.

Lembrava-me que o Leonel sempre fora assim: vivo e comunicativo, e a idade não lhe diminuíram a exuberância das falas nem a alegria de viver que ressumava pela pele suada e morena do sol das belas praias da marginal e pelo brilho intenso do olhar, irrequieto e vivaz.

Ao contrário de mim, que sempre fui comedido e, se nalguns momentos tive arroubos iguais aos de Leonel, eles não foram regra mas excepção e como excepção, deixei-os presos nos espinhos das micaias com que fui deparando nos caminhos amargos da vida. Tornei-me mais taciturno, retirado de todos e de mim mesmo, protegido dos males do mundo por muralhas oníricas que eu próprio, metódica e laboriosamente fui construindo, como a larva do bicho-da-seda constrói o seu casulo. Menos expansivo do que fora antes, os complexos de timidez de que nunca me consegui libertar e que me inferiorizavam aos olhos de todos, tomavam formas definitivas de domínio absoluto sobre os meus desígnios, limitando-me o pensamento e a vontade que, com a frequência dos desejos, se tornavam rebeldes e ousavam tentar libertar-me desse colete-de-forças que me limitava a espontaneidade e me cerceava o empenho, em impor o meu carácter e expor as minhas ideias.

O criado chegara entretanto e, com simpatia e solicitude, dispôs sobre a mesa o que o nosso amigo tinha encomendado, juntando-lhe um copo com gelo.

Leonel fez questão em fazer um brinde à nossa chegada e, depois do tilintar dos copos e de alguns goles para lubrificar a palavra, quis saber:

-Já deram alguma volta pela cidade? – E sem esperar resposta acrescentou:

-Como a acharam em relação aos tempos do antigamente?...

-Mais velha, - respondi – e quando digo mais velha é porque não lhe encontro sinais de rejuvenescimento, de prédios e novas infra-estruturas. Parece-me uma cidade incapaz de sair do marasmo a que a votaram, e os beirenses mostram-se ineptos para lhe insuflar uma nova vida e um novo sangue. Tirando um ou outro investimento de menor importância, como as instalações do supermercado “Shoprite”, miniatura do que foi construído em Maputo, e do velho prédio Bulha, restaurado e transformado num moderno e pretensioso centro comercial, para as limitadas e modestas capacidades da população beirense em se servir dele, pouco mais vimos…

-Embora a cidade seja pequena, é suficientemente grande para a percorrermos a pé e não temos transporte para a ver como queríamos e devíamos – disse a Laura. – O que vimos foi de boleia, mas uma coisa nos impressionou: é uma cidade limpa. Não encontramos o lixo amontoado como acontece em Maputo…

-Isso deve-se ao bom funcionamento do Conselho Executivo que tem feito um bom trabalho… - disse Leonel, que depois de uma pequena pausa continuou, - e também ao civismo das pessoas que assumiram a necessidade de viver com asseio para evitar doenças e de, por essa mesma razão, contribuírem para que a cidade se conserve limpa…

-Mas uma coisa nos impressionou e entristeceu, o estado de degradação do Grande Hotel, – disse-lhe eu – talvez porque o tivéssemos conhecido nos seus tempos áureos e estado presentes como mirones de rua, na sua inauguração…

-Ah!... O Grande Hotel, o elefante branco do sítio… - suspirou o nosso amigo com visível tristeza…- no estado em que está, é uma vergonha para nós e para quem nos visita. De certa forma ele espelha o estado da nação que está em muito mau estado por causa da política do deixa-andar, e enquanto se deixa andar está tudo bem, desde que fique bem quem nos governa e não nos deixa andar

-Cheguei a visitá-lo depois da inauguração – continuei, - para admirar a sumptuosidade do edifício e dos seus interiores; os largos corredores; as grandes e vistosas escadarias; os requintados salões dos restaurantes que ombreavam com os palacianos de Londres ou de Paris, suponho, porque os não conheço; o riquíssimo mobiliário em madeira; os tapetes e tapeçarias vindas presumivelmente da Pérsia; os magníficos candelabros de cristal que cintilavam como diamantes,.. enfim; um fausto exacerbado que feria os sentimentos do cidadão comum, que fazia do dia-a-dia uma árdua batalha para sobreviver condignamente, mas de que, paradoxalmente se orgulhava, por servir de arma de arremesso contra os “coca-colas” da capital que não tinham um hotel tão majestoso, nem o havia que se comparasse, segundo se dizia, em todo o continente africanoera então a sala de visitas da Beira, para onde jornalistas e fotógrafos de todos os quadrantes se dirigiam para escrever sobre ele e recolher imagens

-E continuam a fazer isso, - disse Leonel – Li há tempos no jornal Savana um texto de uma tal Paola Rolletta que dizia entre muitas outras coisas… vamos ver se me lembro – fez uma pausa, aproveitando-a para levar à boca uma chamuça e despejar o resto da cerveja que tinha no copo, prosseguindo depoisera mais ou menos isto: “O Grande Hotel virou imagem de marca da cidade: nãofotógrafo estrangeiro que não vá, nãojornalista que não o cite, nãodocumentário sobre a Beira e sobre Moçambique que não mostre, quase morbidamente, como as imagens da decadência.”

Chamou de novo o empregado e encomendou, depois de olhar para os nossos copos ainda a meio e sorrir com complacência:

-Traga mais uma cerveja mas desta vez que seja da marca Manica. Não quero da Laurentina como a que serviu da primeira vez, porque é lá da capital e a nossa é melhor…

O empregado, visivelmente perturbado, desculpou-se:

-Mas patrão não tinha pedido a marca que queria e eu não sabia…

-Eu sei, tens toda a razão. A culpa foi minha, mas agora prefiro “Manica” e não te esqueças; que esteja bem geladinha. – E voltando-se para nós. – Vocês estão relutantes em festejar condignamente este momento de festa para a Beira que comemora o centenário, e para mim, que me sinto contente por este nosso reencontro…

Sorrimos. Leonel continuava a ser igual a si próprio, tal como o havíamos conhecido trinta anos antes: extrovertido e franco. Embora nunca tivéssemos tido com ele grandes intimidades, sempre nos agradou a sua presença alegre e contagiante.

-Era lá que a minha mulher arranjava o cabelo, fazia a sua “mise”… - recordou Leonel com atrasos de continuidade na conversa… depois ia buscá-la e tomávamos um café ou um refresco no pequeno restaurante da piscina.

-Nunca fui a essa cabeleireira – disse a Laura, - os preços eram elevados para as nossas posses e o ambiente demasiado snobe para meu gosto…

-Lá isso é verdade – confirmou o nosso amigo. – Mas a minha mulher que Deus tem nos braços de outro e que começou por me pôr os cornos muito cedo, tinha dessas fraquezas...

Não comentámos o desabafo e não avançámos nem que sim nem que não, que desconhecíamos ou já sabíamos… limitámo-nos a desviar os olhares da testa limpa do nosso amigo, e fixá-los no movimento cada vez mais intenso da Praça. Depois, a Laura, oportuna e convenientemente, corroborou, pegando no fio interrompido da conversa:

-Por algum tempo nós servimo-nos da piscina do Grande Hotel… davam-se lá lições de natação e nós, aconselhados pelo nosso médico, entregámos o nosso filho mais velho aos cuidados do monitor, no sentido de ventilar melhor os brônquios e melhorar da dispneia alérgica de que sofria.

O que a Laura dissera tinha acontecido logo após a independência, quando o enorme edifício era utilizado apenas para nele se darem festas, realizarem conferências e cimeiras. Nele se realizaram também casamentos como em 1971 o da Patucha Jardim, filha do engenheiro Jorge Jardim de má memória como homem e como afilhado de Salazar e outros, - que me lembre dois a que assisti, - de figuras políticas em ascensão meteórica, consideradas importantes para a politização das massas e estabilidade daquela praça recém tomada, avezada a contestações e rebeldias incómodas.

O Grande Hotel conservava então toda a sua magnificência, mas com graves sinais de abandono precoce, que o levariam a uma degradação rápida e total, agravada pelos ventos salitrosos que sopravam do vizinho mar. De todo o conjunto, a piscina foi a que se conservou em actividade por mais dois ou três anos. Pensando em tudo isto com alguma nostalgia, sacudi a melancolia que me tomava como cão que sacode o pelo molhado, e retomei o tema:

-Não estou bem certo Leonel, mas parece-me que o proprietário do Grande Hotel era, segundo constava, a que fora em tempos idos a majestática Companhia de Moçambique, que governou por um período de 50 anos concedidos pelo governo, o então chamado território de Manica e Sofala…

-Não era mas vem dar ao mesmo…- interrompeu o nosso amigo.

-Depois esclarecerás isso. – E continuei: - Deixa-me discorrer sobre a história destes sítios. Como ia dizendo, esse território que é imenso, constituía a província de Manica e Sofala e assim se continuou a chamar depois de retomado pelo governo. Mais tarde, por ser uma região extensa ou por razões geopolíticas, o governo da Frelimo decidiu dividi-lo em duas províncias: a de Sofala que conservou a Beira como capital e a de Manica, que herdou como capital a cidade de Chimoio, antes conhecida por Vila Pery.

-Pois então toma nota: o proprietário do Grande Hotel, tanto quanto sei - esclareceu Leonel, - era o Entreposto Comercial de Moçambique, uma associada da Companhia de Moçambique e, quem dava a cara, era um tal Brandão, o principal administrador. – Fez uma pequena pausa e, com um ar concentrado, continuou:

-O que não percebo e me faz confusão, é que motivos poderiam ter levado a construir um Hotel daquela grandeza com apenas 122 quartos. Os entendidos da época disseram logo que era um disparate, que tinha um número insuficiente de quartos para sustentar um monstro daquele tamanho… – nova pausa e nova reflexão: – deviam ter razão... mas não acredito que o Brandão e os dois arquitectos que estiveram envolvidos no projecto, - o José Porto que o projectou e abandonou depois não se sabe porquê, e o Francisco de Castro, que o acabou e acompanhou, - fossem tão estúpidos para insistir e concluir um edifício tão gigantescopara o cidadão comum tudo o que o envolvia era um mistério

Ficámos alguns momentos em silêncio a meditar no assunto enquanto mastigávamos e bebíamos o que restava da última rodada até que, relembrando o passado, decidi dizer o que lera e ouvira na altura sobre a questão:

-Todo o mistério se resumia no interesse que tinham o proprietário e os eventuais financiadores em abrir ali um casino…

-E porque não? – Interrompeu-me. - Se havia casinos em Lourenço Marques, como o Bellos e o Costa, porque não um na Beira?...

-Pois é, - continuei: - o Grande Hotel foi construído precisamente para esse fim. Com infra-estruturas e serviços de apoio de qualidade: uma piscina olímpica à beira-mar para refrescar as cabeças esquentadas dos perdedores de fortunas; cabeleireira e butique à beira da piscina para distrair as respectivas mulheres; tudo à beira disto e daquilo, do exagero e do ridículo por exemplo, para servir uma pequena elite de bem-aventurados, numa cidade constituída maioritariamente por pobres, os pretos, e por remediados, os brancos…

-Eh !... Interrompeu-me mais uma vez o Leonel. – Eu desconsigo participar numa conversa sem molhar o bicopor mais interessante que seja a conversa, este calor seca-me a garganta e embute-me as ideias. – Sem nos perguntar a opinião, limitou-se apenas a olhar de relance para os nossos copos vazios e chamar o empregado:

-Para mim mais uma média e não te esqueças, quero-a bem geladinha e que seja Manica; para os meus amigos mais dois whiskys… com gelo e água não é? – Perguntou.

Assentimos, mais para o acompanhar e lhe dar prazer do que por hábito ou necessidade.

Depois de servidos e de molhadas as securas, retomei a fala interrompida:

-Havia também uma passerelle para a passagem de modelos que ditavam as modas às representantes do feminino da fina-flor da sociedade beirense… enfim, um luxo ostensivo e ofensivo para o meio. O que aconteceu, é que contaram antecipadamente com os ovos no cu das galinhas das suas capoeiras para fazer omeletas e os cozinheiros, sem eles, não puderam fazê-las…

-Não chegaram as cunhas nos ministérios para desencunhar os ovos das apertadas cloacas – ironizou Leonel com o lábio superior branco de espuma.

-Pois não, - continuei: - todas as tentativas para se estabelecer um casino na Beira que rivalizasse com os que havia em Lourenço Marques, falharam. Salazar não gostava de casinos. O próprio bispo da Beira, Dom Sebastião Soares de Resende, tido como progressista, não ajudou. No dia da inauguração benzeu o edifício como lhe competia e ficou por aí…

-Benzeu-o se calhar, - disse o nosso amigo - não com água benta como lhe competia, mas espargindo-o com salpicos de vinagre...

possível mas o certo, é que também ele não gostava da ideia de um casino porque, na sua óptica, viria a poluir os brandos costumes da sua diocese, como escreveu a Paola Rolletta que referiste, na crónica do Savana.

A manhã ia adiantada e um certo cansaço tomava conta de nós, tal como os vapores etílicos, dos nossos ritmos cardíacos e do nosso equilíbrio emocional, causando-nos sonolência O contrário acontecia com Leonel, que se mostrava cada vez mais eufórico e comunicativo. Sabia que as bebidas actuam diferentemente, consoante o metabolismo de quem as bebe. A uns causam-lhes cansaços antecipados e letargia e a outros, insonolência e exaltação desmedida.

Dificilmente, eu e a Laura acabaríamos a que nos restavam nos copos. Raramente bebíamos como ela dissera e quando o fazíamos, era em comemoração de qualquer coisa ou em festas, e mesmo nestas, com moderados cuidados. Tínhamos, tal como dos automóveis, a noção exacta da capacidade dos nossos depósitos.

Tacitamente, resolvemos deixar os copos a meio com as pedras de gelo a dissolverem-se, apesar das frequentes insistências do nosso amigo e, para o distrair e lhe refrear os entusiasmos, decidi ocupá-lo, dando continuidade à conversa:

-Estivemos na Ponta-Gêa e visitámos o local onde moribunda o monstro. Fomos tomados por uma grande tristeza e desilusão; compreensível, porque estivemos presentes aquando da sua construção em 1954 e fizemos parte da euforia generalizada que ele provocou nos anos que se seguiram, que foram de orgulho esplendoroso e de glória. Hoje, a decadência é total; nos três andares enegrecidos pelo tempo de abandono e sujidade, florescem árvores e arbustos por entre as fissuras abertas no betão desarmado, como em campo de cultivo devidamente adubado.

-É uma tristeza não é?!... – disse Leonel, que depois de uma pequena pausa para reflectir, continuou: - moram lá mais de 2.000 pessoas em condições desumanas e degradantes, sem energia e sem água, convivendo com detritos de toda espécie e ratos do tamanho de gatos. Um autêntico chiqueiro!...

-Como um subúrbio, com todas as suas vergonhas e misérias, implantado no coração da cidade… mas nada se tem feito para resolver o problema dessa gente e do próprio edifício? – Perguntei.

-Têm havido algumas tentativas falhadas; mais por parte da sociedade civil do que do governo, que se queixa de não ter dinheiro, mas o que não tem, e isso está patente no abandono a que foram votadas aquelas pessoa e no desinteresse em resolver os seus problemas, é vontade política.

-Nenhuma tem emprego?... – Quis saber. – Como sobrevivem?!...

-De expedientes – respondeu Leonel, - um ou outro tem emprego mas a maioria desenrasca-se como pode…- e depois de uma pequena pausa que aproveitou para beber o resto da cerveja que tinha no copo, continuou: - conheço duas famílias que vivem lá há alguns anos; a do Manhepe que é alfaiate e que com a sua velha “Singer” vai fazendo alguns biscates que vão dando para esquecer as fomes, e a do Simango que, com restos de madeira apanhados onde calha, um cepo a servir de martelo, um formão ferrugento e a sua arte, esculpe curiosas e interessantes peças de artesanato, que os filhos vão depois vender pelas ruas.

-Estamos a falar de um grupo de 2.000 pessoas e das condições miseráveis em que vivem, mas quantos milhões há por este país fora que estão nas mesmas ou em piores condições… estas ainda têm um abrigo sólido enquanto não se decidir o que fazer do Grande Hotel…

-E só saem de lá se forem indemnizados… é o que dizem. Entretanto a vida torna-se-lhes cada vez mais difícil. Até aqui têm feito a comida nos corredores ou nas varandas, utilizando como combustível o parquet que arrancam do chão bem como a madeira dos aros das portas e das janelas, mas até quando?... E sabes que mais?!... Perguntou Leonel que logo respondeu: - alguns deles até são proprietários…

-Proprietários!?... – Estranhámos.

-Sim. – Confirmou Leonel que continuou com um sorriso complacente: - são coisas que só acontecem na nossa terra, onde tudo ou quase tudo é permitido desde que, o que se faça ou deixe de fazer, não belisque minimamente com os interesses dos poderosos.

-Mas conta lá essa de alguns serem proprietários…

-Eu conto em poucas palavras: em 2004 a Associação Muçulmana da Beira ofereceu casas para 30 famílias no bairro da Chota. Mudaram-se para lá mas pouco depois decidiram alugar as casas e voltar a viver no Grande Hotel que por si, constitui já uma comunidade e onde muitos deles estabeleceram raízes profundas, iguais às dos viçosos arbustos nas fissuras dos andares, lembrando matos suspensos para criar ambientes iguais aos do campo, donde todos ou quase todos vieram.

-Lembras-te – perguntei, - quando logo depois da independência, foram constituídos em todos os bairros e unidades de produção os chamados Grupos Dinamizadores?...

-Então não lembro, - confirmou Leonel, - tive alguns problemas laborais na minha oficina, provocados por alguns dos membros do Grupo Dinamizador que foi formado com os meus trabalhadores. Por um lado, a carência de conhecimentos e por outro, imbuídos pela suspeição do patrão porque era branco, estigma que me colocava como potencial reaccionário e sabotador da economia revolucionária, interpretavam mal as normas orientadoras e as leis e abusavam do poder que lhes tinha sido dado, assim mesmo, de mão beijada…

-Houve muitos abusos de facto; posso confirmá-lo porque estive dentro deles, mas era um exercício novo de liderança que nos motivava. Foram importantes para o momento conturbado em que se vivia. Aprendíamos com a experiência do dia a dia, e fazíamo-lo com entusiasmo. Sentíamos que era necessário consolidar a revolução e estar atentos às actividades estranhas dos inconformados com a situação, que podiam pôr em causa a segurança e a estabilidade de todos. A importância do nosso trabalho e a certeza da sua necessidade, esclarecendo e orientando, dava-nos um certo prazer e criava-nos o sentimento de sermos úteis à sociedade e ao país. Por estarmos numa fase de aprendizagem, houve quem se aproveitasse da situação e cometesse abusos, mas até sobre esses tínhamos de estar atentos e corrigi-los. – Acabei por beber o que restava do copo para descansar pensando, prosseguindo depois: - eu próprio fiz parte do Grupo Dinamizador do meu bairro, a Ponta-Gêa, tendo ficado como responsável pelo sector da Informação e Propaganda… deves lembrar-te…

-Lembro-me perfeitamente – disse Leonel, - até me ajudaram a resolver alguns milandos…

-Pois é. Mas tudo isto vem a propósito do Grande Hotel, onde o Grupo Dinamizador de que fiz parte se instalou; mais propriamente no lugar onde funcionava o bar, junto à piscina que ainda estava activa, e numa das salas do piso térreo. Nela elaborávamos as notícias locais e nacionais, escritas com canetas de feltro em papel de cenário para o nosso Jornal do Povo, que colocávamos semanalmente numa das paredes do cinema São Jorge, bem à vista de quem passava a pé ou de carro…

-Era o melhor da cidade… recordo-me bem; cuidadosamente elaborado e bastante atractivo; com letras a cores bem desenhadas, e muitas das notícias ilustradas com desenhos a propósito.

Aproveitei os elogios do meu amigo para reflectir e, lembrando-me de um pormenor, continuei:

-Os Grupos Dinamizadores foram de importância vital. Lembro-me de certo dia em que dois cidadãos nos procuraram para nos comunicar que na noite anterior, quando caminhavam pela marginal, tinham notado luzes estranhas vindas do mar e movimentações suspeitas na praia. Comunicámos o facto às entidades encarregadas pela segurança que logo iniciaram as investigações. De facto, haviam rastos visíveis na areia que indicavam ter sido arrastado um pesado volume, desde o rebentar das ondas até à marginal. A 500 metros de distância existia um denso e extenso mangal e foi ai que os peritos intensificaram as suas acções de busca. Descobriram os rastos bem no interior do mangal que os levaram a uma pequena clareira onde a terra tinha sido remexida. Cavaram e trouxeram à superfície um caixote que se assemelhava a um caixão e que logo abriram. Dentro, devidamente oleadas e embrulhadas, encontraram armas de guerra, obuses, minas e munições, em quantidade suficiente para causar perturbação e grandes estragos…

-Esses tempos foram terríveis e intensos; o medo e a desconfiança moravam nos corações das pessoas, - disse Leonel que acrescentou: - também me recordo de uma pequena lagoa nesse mesmo mangal que bordejava uma estrada de terra batida que ligava a “Baixa” à “Ponta-Gêa”. Dela foram retiradas armas de caça, granadas, pistolas e munições. Os seus donos, antes que fossem apanhados nas rusgas que então se faziam casa a casa dos eventuais suspeitos, desembaraçavam-se delas como podiam a coberto da noite

Aproximava-se a hora do almoço e tanto eu como a Laura, não desejávamos chegar atrasados a casa da Maria e do Fernando, o casal amigo que nos dera abrigo durante a nossa curta visita à Beira, embora o tema da conversa me seduzisse e ter consciência de que muito ficaria por dizer.

Mas antes de nos despedirmos, o Leonel ainda nos colocou uma questão:

-Quando conseguirem despejar o “Grande Hotel” dos seus ocupantes, e isso só acontecerá quando houver dinheiro para as indemnizações, o que farão do edifício?!... Deitá-lo-ão abaixo por implosão?!...

-Quem somos nós para tentar adivinhar o que se passa nas cabeças dos responsáveis pelo imobiliário nacionalizado e que foi tão maltratado ao longo dos anos? … - Perguntei por minha vez acrescentando logo a seguir: - O Grande Hotel devia ser preservado, não só pelo que representa como obra arquitectónica impar no panorama nacional, mas também porque, de certo modo, ele simboliza um pouco o que foi e o que é, a história do nosso país: desde a política de Portugal nas províncias ultramarinas através de um empresariado de limitada e obtusa visão estratégica e da guerra que nos foi imposta depois da independência, até à “história da pobreza e dos mil engenhos da miséria” como escreveu Paola Rolletta na sua crónica, onde acrescentou ainda: “A história de um delírio.”

-Estás a sugerir que se podia fazer daquilo um museu?!... Perguntou Leonel que depois de reflectir um pouco no assunto, acrescentou animado: - a ideia até me parece interessante, mas havia que restaurar o edifício e devolver-lhe na medida do possível a indignidade de um fausto ofensivo e o que dele foi retirado por constituir parte desse delírio. Devolver-lhe a obscena ostentação de riqueza que alardeou, num meio de tanta pobreza, durante a sua tão efémera glória…

-Do que lhe foi retirado, não creio que apareça alguém disposto a proceder à sua devolução. – Acrescentei. - Ao que se supõe, porque ninguém se referiu a isso oficialmente e é legítimo que se suponha por tantos outros exemplos conhecidos que candeeiros, candelabros, tapeçarias e todo o precioso recheio, foi oportunamente retirado para ser colocado no palácio da Presidência da República em Maputo…

-É o que se diz, - confirmou Leonel.

-Pois é… ou ainda se conserva lá na sua totalidade ou parte dele terá sido distribuído por palacetes privados que entretanto foram surgindo como cogumelos. Os terrenos eram propícios. Enriquecidos pela decomposição do tecido humano da fina-flor da nossa sociedade e de outros animais menores, transformaram-se em húmus de qualidade maior, vivificante e liberal em regime de exclusividade.

-Pois é – comentou Leonel, - a Beira, para além de rejeitada pelo poder central, é ainda espoliada do que lhe pertence por direito e por herança.

-De qualquer modo parece-me ser viável a ideia de transformar o nossoelefante branco” num museu; – insisti e acrescentei: - recordo-me que nos anos das desconfianças e dos medos colectivos que se seguiram à independência, as caves do Grande Hotel eram utilizadas como celas para os prisioneiros políticos, os que eram considerados potencialmente reaccionários e que poderiam constituir perigo para a implantação da então chamada República Popular. Foram sendo recolhidos pelas rusgas que então se faziam nas casas dos eventuais suspeitos, que o eram por razões legítimas ou por simples e ilegítimas denúncias e colocados ali. Ficavam então à espera por decisões superiores que poderiam ser, e foram-no para muitos deles, a expulsão imediata do país. Aplicaram-lhes a medida 20x24, correspondendo respectivamente 20 quilos de bagagem e 24 horas para abandonarem o país.

-Foi quando começou a debandada em grande escala dos antigos colonos. – Disse Leonel. – Muitos deles com receio de continuar a viver num país governado por pretos

-Talvez fosse essa a principal razão mas haviam outras. Entretanto, mais tarde, as mesmas celas serviram de passagem para os detidos durante a famigerada “Operação Produção”, antes de serem reencaminhados para os campos de reeducação…

-“Operação” de má memória… - considerou o nosso amigo que continuou: – a ideia era limpar as cidades dos sem trabalho, das prostitutas, dos improdutivos e dos vadios, potencialmente perigosos numa sociedade que, nesse tempo, ainda se desejava que fosse exemplarmente saudável

-Era esse o propósito – interrompi, - mas houve abusos e excessos por quem não estava habilitado a lidar com os sentimentos das pessoas e estas foram tratadas como rezes a abater, transformando-se a “Operação” num indecente e criminoso fracasso. Cometeram-se desaforos e injustiças, meteram-se no mesmo saco pessoas honestas, separaram-se casais, levaram-lhes os filhos sem aviso prévio, arrebanharam nas ruas e à saída dos cinemas, trabalhadores e estudantes e todos foram levados para a província do Niassa, a milhares de quilómetros de distância, para campos de reeducação que não existiam e ali os deixaram abandonados. Alguns morreram de fome e uns poucos, como se afirma, serviram de pasto às feras...

-Foi uma autêntica desgraça – disse Leonel, - um desrespeito aos direitos do cidadão, uma fria e cruel forma de se tratar a pessoa humana

verdade. Foi também o início do desastre, do desencanto, da traição aos nobres ideais que sustentaram a luta de libertação nacional. Um ensaio para as prepotências que se seguiram, com melhor talento e maior potência, mas continuando: - alguns elementos das forças de defesa e segurança, fizeram então do terceiro andar do Grande Hotel a sua casa e por ficaram algum tempo até que, como resultado da guerra que devastava o país, a população civil de várias camadas sociais e várias proveniências, foi sucessivamente ocupando os quartos que mantêm até hoje

-O Grande Hotel alberga páginas de um período da nossa história que vale a pena contar e preservar, - disse Leonel – e estou de acordo contigo. Transformá-lo num museu onde as nossas crianças o pudessem visitar acompanhadas dos pais e professores para recolherem deles informações e ficarem assim a conhecer e compreender melhor um determinado período das nossas vidas e da nossa história é, no mínimo, uma obrigação dos responsáveis pela cultura deste paísmas achas isso viável?!... – Perguntou. – Alguém estará disposto a perder tempo com essas ninharias que não são compensatórias nem abonam de mais valias os seus bolsos privativos?!...

-E porque não!?... Atitudes messiânicas acontecem de quando em vez e quando menos se espera. A essência do materialismo dialéctico passou de moda no nosso país, mas sobejaram ainda alguns espíritos que continuam a alimentar-se de idealismos hipotéticos

-Assim como nós, que apesar das tempestades, teimamos em voejar sobre nuvens brancas de esperança!... – Murmurejou meditativo o nosso amigo!...

-Talvez tenhas razão - disse-lhe eu, - mas assim como noutros países se preservam castelos medievais e velhos edifícios, transformando-os em livros abertos onde todos podem ler o melhor e o pior da história dos seus avós e dos seus países, também nós temos a obrigação de o fazer, preservando o que ainda está a tempo de ser preservado, sem vergonhas nem complexos de culpa, sem medos dos presumíveis fantasmas que os juízos da história e das nossas crianças possam criar, em relação aos nossos actos e aos nossos erros.

E foi aqui que nos despedimos com um forte abraço, como se fosse o último, o derradeiro.

E talvez fosse…

por José Cardoso