16/07/07

Crónicas de José Cardoso (5)

“Para grandes males grandes remédios”, é um aforismo muito popular entre nós e o governo não hesitou em segui-lo, tomando medidas extremas como “grandes remédios” numa feroz repressão contra os “grandes males” que representavam no momento o “Diário de Moçambique”, amordaçando-o duramente e enfraquecendo-o, para que mais tarde caísse de maduro e o pudesse tomar de assalto por via de algum acólito sabujo.

Assim, por despacho do Secretário-geral da “Província”, de 14 de Fevereiro de 1968, ordena-se: “fica suspenso o referido jornal por trinta dias a contar do dia da notificação, por ter publicado no seu número 6167, de 7 do corrente mês, o artigo sob a epígrafe “Automóveis roubados” sem que o tivesse submetido previamente à apreciação da Comissão de Censura à Imprensa”.

A denúncia de crimes e de criminosos, estava pelo que se lê, igualmente sujeita à peneira do censor, não fossem eles pessoas gratas ao regime e como tal intocáveis. Seria um acto ridículo se o mesmo não fosse escandalosamente cúmplice, dos abusos que então se cometiam, em nome de uma moral inquisitória e corrompida, até à medula das conveniências insensatas e totalitárias.

Para sofrer tamanho castigo, para que se calasse um jornal diário por período tão longo, o artigo devia ser uma “bomba”, talvez “um libelo terrível”, parafraseando Ramalho Ortigão noutro contexto, contra o governo português e contra a sua política colonial.

Afinal era apenas a denúncia de um facto que era conhecido e comentado por toda a cidade, mas, nada melhor do que transcrever o referido artigo para podermos aquilatar da potência da “bomba” e da prepotência do censor e do governo da “Província” ou melhor, do território de Moçambique colonizado. Transcrevo-o pois para apreciação do ledor atento e com tento, ou para que fique simplesmente registado:

“Se o leitor, por volta da meia-noite, deu por falta do seu automóvel, talvez lhe encontre a pista lá para os lados da Manga, à beira de alguma ruela; com noventa por cento de possibilidades acertará se pensar que lhe foi levado por algum pequeno grupo de militares.

Se o leitor dá pela falta do carro à madrugada, pode encontrá-lo, muito provavelmente, junto da Base Aérea. Com noventa por cento de possibilidades, foi-lhe levado por militares daquela Base.

Se o leitor encontra o seu carro onde o deixou, visivelmente amolgado, indiciando tentativas de abertura e furto, tem noventa por cento de possibilidades de acertar, atribuindo o desacato a militares da Força Aérea. Com efeito, desde há muito tempo, multiplicam-se os destemperos do género; e a sua frequência demonstra que isto agora é assim...”

E o artigo prossegue com algumas considerações de ordem moral e cívica, mas o que transcrevi é suficientemente esclarecedor de que aos militares-ladrões lhes era dada protecção e impunidade.

Todos sabiam, até as populações dos subúrbios que, quando alguns grupos de militares da força aérea se deslocavam da Manga onde estavam baseados, para se divertirem no centro da cidade, ao aproximar da hora de recolher, não se inibiam para tomar de assalto um ou mais automóveis, conforme o número de bandos, e neles se fazerem transportar, abandonando-os nas imediações da base.

Todos sabiam mas ninguém mexia uma palha para os deter e pôr na ordem, porque era aconselhável trazê-los nas “palminhas das mãos” para evitar descontentamentos e distúrbios maiores, já que muitos deles iam tomando consciência de que a guerra em que participavam não era a deles e que estavam nela para defender interesses que não eram os seus.

De heróis cegos e patriotas obtusos estavam os cemitérios e os infernos cheios!...

Quero no entanto salvaguardar aqui a honra e a dignidade de alguns que conheci pessoalmente e de muitos outros, que se punham à margem destes desacatos e os condenavam, assim como condenavam uma guerra que lhes era imposta e que consideravam injusta.

A ideologia fascista que leva a estes excessos, infelizmente, tem ramificações e defensores por todo o mundo, como prova a insultante e descarada afirmação do editorialista mexicano António Uroz, que visitou Moçambique em 1962, a convite do governo colonial:

“Se em alguma parte existe liberdade e autêntica democracia, é na província de Moçambique.” Que tremenda mentira e que desplante!...

Não fosse o talento que demonstrou ter este senhor jornalista, para o descaramento e a sabujice, nunca teria sido convidado.

Que outros comentários fazer senão o da minha convicção de que, por crimes menores do que o cometido pelo senhor António Uroz - que ousou insultar publicamente todo um povo oprimido e explorado, exaltando os que o oprimem e exploram -, têm sido muitos cidadãos de outros países condenados por injúria, a pagamentos de coimas e até de prisão!... Mas estes casos vão sendo cada vez mais raros porque, nas “democracias” do ocidente, a jurisprudência é manipulada de forma a garantir uma maior prudência nos juízos, para salvaguardar os interesses obscuros de quem detém o capital e o controle dos mídia e das ideias.

Sobre conceitos de democracia, chamo à liça “Abraham Lincoln” e o meu amigo Guilherme Afonso. Aquele pelo que disse e este pelas informações e considerações que me fez a propósito.

“Pode-se enganar alguns do povo a todo o momento, e todo o povo algumas vezes, mas não se pode enganar todo o povo a todo o momento.” Quem o disse não foi “Bush” – que o Diabo me livre dele porque de Deus é confrade -, mas o 16.º presidente dos Estados Unidos da América (1861-1865), Abraham Lincoln, informou-me o Guilherme que teceu as seguintes considerações, “…de quem vale apenas saber-se que foi o mesmo que, com a sua governação progressista, levou ao desencadear da Guerra Civil Americana (também denominada Guerra da Secessão), e que assinou, em 22 de Setembro de 1862, a Proclamação de Emancipação dos escravos no seu país. Nada de estranhar pois, que num breve discurso em 19 de Maio de 1863 se tenha pronunciado a favor da democracia, definindo-a como “o governo ao povo, pelo povo e para o povo”. Que Lincoln foi um democrata a sério, prova-o a forma como arduamente lutou pelas suas convicções. O que acabaria aliás, por custar-lhe a vida, baleado, em 1865, por um sulista. (Porque se opunham à política anti-esclavagista de Lincoln, os sulistas pretenderam a secessão dos EUA entre o Sul e o Norte e bateram-se por isso, saindo derrotados).

Num desabafo, idêntico a muitos que tenho, porque me aliviam os nervos e me contêm os impulsos, o Guilherme termina: - “Será porque fazer-se corresponder o que se faz ao que se diz implica altos riscos, como vimos em relação a Lincoln, que tanto indivíduo que se apregoa de democrata e faz certas promessas em eleições ao candidatar-se a altos cargos da governação, uma vez conquistado o poder faz tudo ao contrário? Isto, para não falar daqueles para quem a democracia é o mesmo que para o senhor George W. Bush, por sinal o 43º presidente dos mesmos EUA, onde, parafraseando Lincoln, alguns do povo vêm há muito sendo enganados a todo o momento, onde todo o povo vem sendo enganado vezes de mais e não parece que esteja para breve um desses momentos em que todo o povo se não deixe enganar.

Será isso, só porque nunca os poderosos puderam tanto e esse poder também lhes dá cada vez mais meios para enganar o povo? Ou será porque o povo gosta cada vez mais de se deixar enganar?...”

Os povos gostam porque não só são colectivamente cobardes mas também carneiros que se deixam tosquiar - apetece-me acrescentar e pedir desculpa aos carneiros que não têm culpa nenhuma -. Basta-lhes uma cobertura de lã para os resguardar dos frios e ventos invernosos, o restolho dos pastos já usados para lhes entreter os estômagos e os dentes podres, por tantas ruminações transcendentais.

In “Memorandos da Vida” III Volume, de José Cardoso

10/07/07

Shikhani : “É necessário aventurar”

Entre as imagens fantasmagóricas e tenazes que me povoam a memória, sem dúvida, estão as de Shikhani. Cabeças, narizes, abdómens, lábios e olhos enormes, descomunais membros superiores e inferiores descalços. Os homens de África, as mulheres de África. Corpo e alma. Alma e corpo e coração. Sensibilidade e faro: África. Personagens monstruosas, flageladas pelos ventos “este” e “oeste”.
É ele que capta as expressões do rosto, os gestos semoventes. Capulanas, calções. Pai da natureza e identidade que concorre para dentro de si: a negritude. Sedentas de afirmação, aqueles olhares esbugalhados, uma toda cultura e povo encarnados num homem. Porta-voz duma maioria oprimida, depauperada pelos cinzentos séculos de escravismo.
Leio-lhe as obras percorridas de memória, idos os anos distantes, longínquos, idas as indagações e inquietações à volta do conteúdo das mensagens reunidas nos quadros fixados às paredes da sua casa do Macurungo. Ele ausente/presente do circuito da convivência. Pelas “Europas” e África repartido. Mais propriamente no dizer de Bertina Lopes corpo além fronteiras, “aqui a alma”. O aqui cognomina-se um dos bairros dos arredores de Maputo, muito afastado do rebuliço citadino, onde, corridos tempos distantes, removida a barreira da longitude e da latitude, o fui visitar, levado pelo Mablinga, o filho, esse amigo que acedera acompanhar-me at´junto do “monstro Shikhani, o Ernesto Pais (nomes próprios com posteriormente vim a saber da pessoa que insistimos chamar Shikhani.
Porquê a necessidade de encontar Shikhani? Nostalgia, e mais do que isto, debitar a dívida, o tributo, pelo que a sua imaginação me tinha dado a ver, desdde a fértil idade. Sou nostálgico do passado e do futuro. Precisava apascentar novas obras suas com os olhos, que mais uma vez me terão consentido o privilégio de estar diante às suas cores aguerridas, alegres, o traço seu que corre o mundo à busca de insigne notoriedade de África. Como noutro tempo percorri demorado a sua inventiva, acariciei a impressão digital que lhe é característica, mesmo que seja à espátula ou pincel. Com ela exorcismam-se fantasmas e demónios de qualquer que seja o observador. Lá está a respiração, o coito, o açoute e o acoitar-se, a pervagação, a dúvida. Fidelíssimo à matriz, à raíz, à essência. A dele e a de muitos de nós. Sem cisão com a partida.
Não posso contemplar os quadros de Shikhani sem que, no final, me dê conta de que teria sido anestesiado por um antídoto que nos faz reféns por extensos minutos.
Até um seu mural destruído pelas forças da ignorância no Centro Social do Macurungo, nesta Beira que também é sua, ecoa dentro de mim. Reverbera. As sinergias das forças anímicas que lhe davam o prumo tornam possível os acordes do peito e do sangue. A mesma veia.
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Tinha perdido o fio à meada. Falava do vulto ausente/presente Shikhani agora a passar-me um recado que me terá ficado após a privação: “Na arte é necessário aventurar”. Que quererá ele dizer? Persistência, perseverança e, acima de tudo, firmeza.
De facto, na arte como em tudo, “é necessário aventurar, digo sempre cá para comigo. Shikhani resiste na memória privada e comum. Dentro de mim registo uma casa situada numa zona pacata da cidade capital, mas que nem por isso deixa de conter um homem com uma obra cujo valor transpõe o seu diminuto átrio. Um homem, por assim dizer, que se passeia por todos os cantos do mundo transportando as ressonâncias e raízes, desde Marracuene a Macurungo, de Macurungo a Maputo. Um homem desigual a tantos, de nenhuma aspereza.
Ao despedir-me do “monstro” sedimentou-se-me na memória aquilo que desde há anos dele tenho visto na Beira, no Palácio dos Casamentos, no Sandromar, hoje Tropicana, no restaurante da Casa da Cultura.
Uma pintura que passa e ficará para todo o sempre. Do outro lado do portão o vulto do aventureiro postado de bruços, corpo escondido, e a cabeça transpondo-se cá para fora, a vista suplantando para lá do mundo exterior, acenando-me a mão, à hora de bai.

texto de Adelino Timóteo


06/07/07

Crónicas de José Cardoso (4)

Em 1946, na cidade, continuava a ressoar o matraquear cansado da Central Eléctrica movida agora a gasóleo segundo creio, esforçando-se por fornecer à urbe, não a energia de que carecia mas a possível, em períodos intermitentes, devido ao desgaste dos componentes e constantes, avarias.

Posteriormente tive a informação - creio que correcta - de que, num passado recente, teria sido movida a vapor, com as caldeiras abastecidas a lenha vinda dos mangais próximos e transportada por lanchas que subiam o Chiveve, suposto rio que era na verdade um braço longo do mar com pequenos afluentes dispersos e malcheirosos, que lembravam os braços viscosos de um gigantesco polvo. Avançava pela cidade adentro atingindo os bairros da Ponta Gêa e do Chipangara e separando a Baixa do Maquinino. Essas lanchas movidas à custa de longas varas destramente manobradas por experientes marinheiros negros e com a ajuda das marés da “preia-mar”, subiam o Chiveve carregadas de lenha de mangal até quase às portas da velha Central.

E porque rememoro o que era na altura a problemática do fornecimento de energia à cidade que era como disse, bastante deficiente, lembrei-me de um pormenor curioso relacionado com esse mesmo fornecimento e que, de igual modo, havia observado em Lourenço Marques sem lhe dar a devida importância: a determinada hora, creio que por volta das oito e meia da noite, a energia baixava gradualmente de intensidade até quase se extinguir, voltando logo a seguir à normalidade.

Só na cidade da Beira, onde o facto também se registava, é que vim a tomar conhecimento das razões desse afrouxar pontual de energia, e elas constituíam afinal um sinal para que os patrões dos empregados domésticos e outros, soubessem que eram horas de os libertar para deixarem o trabalho e recolherem a casa porque, a partir das vinte e uma, não era permitido ao negro deambular pelas ruas da cidade de cimento, nem mesmo pelos bairros indígenas da periferia, a menos que tivessem em seu poder um ”salvo-conduto” ou “passe”, ou até uma carta do patrão, que justificasse a sua saída tardia do serviço.

Era a hora do recolher obrigatório!...

Muitos dos que moravam nos bairros mais distantes, tinham que fazer o trajecto em passo de corrida, para não serem apanhados e levados para os calabouços onde passavam a noite, para serem libertados no dia seguinte se estivessem em condições de justificar a infracção e mesmo assim, só depois de castigados pelas tradicionais e humilhantes palmatoadas, dadas pelos seus irmãos de cor, os sipaios, que o faziam a mando dos seus superiores hierárquicos. Se não obedecessem a tão aviltante ordem, uma recusa inconcebível e por isso muito rara, eles próprios eram submetidos ao mesmo tratamento, agravado com alguns dias de calabouço e suspensão de funções por períodos determinados e por vezes expulsos da corporação policial.

Sendo rara como disse essa recusa, é de toda a justiça e em nome da verdade que se diga de passagem para que fique registado o facto, que alguns deles o faziam com satisfação e com requintes de malvadez que lhes não eram exigidos, sobretudo quando o detido não lhes era simpático ou pertencia a região ou etnia diferente da sua.

Era “um ver se te havias” nas formas repressivas para travar leviandades que estivessem em incubação nas cabeças duras dos pretos, de prevenir irreverências futuras ou ainda, para acautelar e desencorajar o desenvolvimento de movimentos subversivos e de potenciais sublevações porque afinal, o acto de pensar e de chegar a conclusões óbvias, não era privilégio da raça branca, que se afirmava como a mais inteligente.

Era este na verdade o pensamento que prevalecia na maioria das cabeças ocas dos colonos portugueses porque, além dessas ideias lhes terem sido incutidas por uma propaganda insidiosa e metódica, a maioria deles era de origem humilde e constituíam terreno fértil para as machambas de culturas dóceis e a minoria os mentores ideológicos, os fazedores da política sócio-económica da metrópole e das colónias, os machambeiros da desgraça.

Infelizmente tive, como o tiveram muitos outros nas pessoas dos seus mainatos e moleques, oportunidade de ver algumas dessas mãos castigadas, apenas pelo crime de andarem na rua por não terem tido tempo de chegar à sua palhota. Apresentavam-se disformes e intumescidas, como alguns dos olhos dos seus donos, por terem passado a noite em claro gemendo de dor, apesar das mijas abundantes que verteram sobre elas, para beneficiarem de algum alívio como se acreditava, mas também e sobretudo por chorarem de raiva e impotência.

Mas ficávamos por aí, como observadores passivos e insensíveis, outros até com uma certa incoerência relativamente às suas ideias e convicções, sem uma palavra ou um gesto de revolta contra tamanhas barbaridades. Tudo não passava de rotina. Tratavam-se os “trambolhos” com banhos de água fria, bálsamos refrescantes e algumas cínicas palavras de conforto, mas tolerava-se a peçonha como um mal menor, um mal necessário para a tranquilidade de todos mas também da nossa vergonha e do nosso opróbrio. Era mais cómodo e evitávamos o epíteto de subversivos contra a ordem estabelecida do “Estado Novo”, no velho e bolorento estado da metrópole colonial!... Partia-se do princípio de que o castigo se não era justo era tolerável, porque o simples facto de se ser preto já era crime bastante para que todos o aceitassem como inevitável, na medida em que todos ou a maioria se calava, sem pedir justificações e exigir responsabilidades a quem as podia dar e assumir!...

In “Memorandos da Vida”, II Volume, de José Cardoso

05/07/07

Apresentando o Cecil

Cecil Rhodes, born this day July 5th, in 1853, was a financier and statesman of British South Africa who served as prime minister of Cape Colony and organized the diamond company De Beers.

"I contend that we [the British] are the finest race in the world and that the more of the world we inhabit the better it is for the human race."

Cecil Rhodes
“Enciclopédia Britânica”


Em 1899 Rhodes esteve na Beira, juntamente com Sir Charles Metcalfe e outras destacadas personalidades, ficando instalados em casa de Alfred Lawley, engenheiro construtor da linha férrea da Beira para a Rodésia. Aí se discutiu o alargamento da linha.


“História dos Caminhos de Ferro de Moçambique” de Alfredo Pereira de Lima