19/08/07

Breviário duma cidade

«[...] uma cidade tem apenas algumas ruas, algumas casas, algumas pessoas.
Suprimam-se essas poucas pessoas e a cidade não existe mais [...]»
Graham Greene (O nosso cônsul em Havana).


O surgimento do «comando militar da Aruângua», que está na origem da cidade da Beira, em 1884, insere-se no grande quadro da ocupação colonial que se deu em África, a partir do último quartel do século XIX, e que se pautou, no seu faseado, por viagens de exploração e reconhecimento, contactos e acordos diplomáticos com as chefias locais, construção de entrepostos comerciais e militares no litoral e a procura de vias de penetração para o interior, onde se localizavam as zonas agrícolas e auríferas, privilegiando o uso do caminho de ferro. O pano de fundo que deu origem a esta dinâmica foi o despertar das grandes potências europeias pelos grandes espaços africanos e asiáticos, projectando no resto do mundo as suas rivalidades, fruto dum nacionalismo agressivo e belicoso.
A Beira é um caso exemplar para ilustrar o movimento concorrencial entre as metrópoles coloniais e os jogos diplomáticos que então se realizavam visando esquartejar o continente africano. O interesse pela baía do Pungué vem desde 1882, quando o explorador Joaquim Carlos Paiva de Andrada, chamou a atenção da «Sociedade de Geografia de Lisboa» para a ocupação efectiva da vasta zona compreendida entre Sofala, Manica e Sena. Esta região era já conhecida dos portugueses, desde o século XVI, mas estes preferiram as rotas de Sofala e, posteriormente, do Zambeze, para fazer chegar o ouro de Manica ao litoral. António Enes, que viria a assumir a função de comissário régio na colónia, justifica o desinteresse pela região em virtude das suas condições geográficas, profundamente adversas à fixação colonial.
As origens e o desenvolvimento da povoação têm a ver, fundamentalmente, com a sua posição privilegiada na futura rede de comunicações que se viesse a construir para o interior. A sua localização definitiva, na margem esquerda do Pungué, à revelia das determinações oficiais, de 16 de Agosto de 1884, reflectem a necessidade de encontrar um melhor ancoradouro, como a existência de fundos mais apropriados, após o reconhecimento hidrográfico do rio Pungué. Em 1897, a fixação naquele local era ainda justificada por razões geográficas, políticas e comerciais. Mas a fixação definitiva de Portugal na região, no interior duma pobre paliçada de paus e matope, nas terras desabitadas do «Bangoé», só viria a dar-se em Agosto de 1887, após demoradas e difíceis negociações com Ngungunhane, senhor da região, após o início da ocupação «nguni», em 1835|1836. Toda a região de Manica e Sofala viria ainda a ser palco de graves conflitos internacionais, nos quatro anos imediatos, estando iminente a sua ocupação pelas forças policiais da «British South Africa Company», em 1891.
A ocupação e o desenvolvimento e tão vastos territórios viria a ser logo entregue a uma sociedade comercial – a primeira «Companhia de Moçambique» - como era comum na época. Mas só após o regresso da tranquilidade aos territórios e a constituição da segunda Companhia, com poderes majestáticos, se iniciaram então os primeiros grandes trabalhos que vieram a transformar a Beira: procederam-se aos estudos do porto, visando ter completo o seu plano hidrográfico, executou-se a sua balizagem e construiu-se um cais acostável para lanchões, na foz do Chiveve; iniciou-se, em 1893, a construção da linha férrea de 0,607 (tendo sido substituída em 1899|1900 pelo actual caminho de ferro de 1,067), já referida no pedido de concessão da Companhia ao Governo, em 1888; começaram-se as obras da defesa da povoação, com a construção duma muralha e aterros do lado do estuário, esforço que se mantém até aos nossos dias; elaborou-se o primeiro plano da povoação, em 1893...

O engenheiro Joaquim José Machado, primeiro governador da majestática, a quem se devem os primeiros grandes trabalhos realizados, dá-nos em 1892 esta imagem depressiva da urbe
: «Na margem direita do Chiveve, havia as Casas da Companhia de Moçambique e mais nada. Na margem esquerda, estava o acampamento da expedição militar, e a aringa do comando militar do Aruângua, já em ruínas».
E será assim, a partir deste povoado, pobre e mesquinho, num ambiente de grande insegurança política e em condições geográficas adversas que a cidade cresceu, vindo a tornar-se num dos maiores portos de África Austral, com uma importância estratégica para quase todos os países da região. Isto mesmo viria a ser reconhecido no diploma de elevação da Beira a cidade, em 29 de Junho de 1907, referindo-se a «excepcional importância da sua posição e manifesto valor do movimento do seu porto e do tráfego do caminho de ferro», transformando-a num «grande centro de navegação e de comércio de largo e prometedor futuro».

***

Seria à volta da linha férrea que se viriam a desenhar as novas ameaças contra Portugal. Este país viria a ser obrigado, pelo acordo de fronteiras com a Inglaterra, de 11 de Junho de 1891, a apresentar o projecto da linha férrea, num prazo de seis meses, acarretando a sua falta a rescisão daquele tratado.
A obrigatoriedade da construção e exploração duma ligação ferroviária, sem qualquer garantia ou subvenção, tinha já sido imposta pelo governo português à Companhia de Moçambique, em 1889. Esta exigência viria novamente a ser expressa aquando da concessão da carta majestática à segunda Companhia, dois anos depois. Este caminho de ferro, no sistema «decauville», deveria atravessar o vale do Pungué ou do Búzi, terminando em Macequece ou na fronteira Oeste de Manica.
Na impossibilidade de se poderem realizar trabalhos num tão curto espaço de tempo, as autoridades portuguesas apresentam os estudos efectuados pelo engenheiro francês Pouhin, realizados ainda no tempo da primeira Companhia e que esta agora prontamente lhe oferece. E será ainda a Companhia a conseguir a aprovação de Sir George Bruce, presidente da Associação dos Engenheiros Ingleses, do traçado do caminho de ferro com início no Pungué.
Tudo o que decorre imediatamente a seguir revela a enorme fraqueza de Portugal neste importante assunto, evitando assumir posições que possam hostilizar os interesses britânicos. O contrato assinado entre a Companhia de Moçambique e Henry Theodore Van Laun, em 12 de Setembro de 1891, para a construção do caminho de ferro, revela enormes deficiências, com a falta de penalização para o não cumprimento das disposições que lhe são impostas. O construtor pretende mesmo, na impossibilidade de reunir os capitais necessários, a transferir a sua concessão para as mãos da «British South Africa Company (Chartered)». E será a recusa da Companhia de Moçambique que vai levar à constituição da «Beira Railway Company», em 1892, iniciando-se então a construção da linha férrea, de via reduzida, que viria a ficar terminada em Outubro de 1896.
Em 1897, à revelia da Companhia de Moçambique, a «Beira Railway» viria a ceder os direitos de exploração à empresa «Pauling & Comp.», contrato este que viria a perdurar ainda por três anos. Posteriormente, com a conclusão da linha férrea Umtáli-Salisbúria e a sua ligação à Beira, as duas linhas passaram a ser exploradas conjuntamente pela «Beira Railway», «Beira Junction Railway» e «Mashonaland Railway».
Finalmente, a via larga viria a ser inaugurada em 10 de Julho de 1900.
A linha viria a ser explorada pela «The Beira Railway Company Limited» até 30 de Setembro de 1949, altura em que passou para a administração portuguesa, através do «Caminho de Ferro da Beira», tendo a sua aquisição custado quatro milhões de libras. Esta decisão teve em vista impedir que o governo inglês viesse a interferir na gestão ferroviária do lado português, em resultado das nacionalizações a que tinha procedidos nas explorações ferroviárias na Rodésia do Sul, em 1948, e da ligação administrativa até então existente entre a «Beira Railway» e a «Rhodesia Railway».
O «resgate» do porto e a sua administração pelo Estado português, em 1 de Janeiro de 1949, e a «nacionalização» da linha férrea, em 30 de Setembro do mesmo ano, tiveram fortes repercussões na cidade, sendo uma das mais visíveis o rápido crescimento da população colonial, que assumiu a gestão daquelas importantes infra-estruturas. A Beira não estava preparada para este súbito aumento demográfico: durante toda a década de 1950 os preços das rendas de casa mantiveram-se extraordinariamente elevados, obrigando as famílias de menos recursos a alugarem as dependências dos prédios. Uma postura da Câmara Municipal, de 1956, viria alterar este estado de coisas, impedindo a sua ocupação por parte dos «indivíduos civilizados».
Será ainda na década de 1950 que a cidade se torna num importante centro turístico regional, após a construção de algumas importantes infra-estruturas, como o Grande Hotel, o Acampamento Turístico e o «Motel» Estoril, no Macúti; estendendo-se ainda a sua influência à Reserva da Gorongosa (depois, Parque); ao Bazaruto, Vilanculos e Inhassoro, onde se construíram hotéis, de propriedade de Joaquim Alves, e o acampamento da SETA, e onde realizava um concurso internacional de pesca; e, para o interior, à região do Garuzo, com a construção da sua pousada. O exercício desta actividade deparava-se com a inexistência duma verdadeira estrada internacional, o que viria a ficar finalmente resolvido após a montagem da ponte do rio Pungué, no início da década seguinte.
A conclusão da hidroeléctrica do Revué, propriedade da SHER, em 1956, permitiu o fornecimento da energia eléctrica à cidade em melhores condições técnicas e a preços mais acessíveis para os seus utilizadores, abrindo campo para a existência duma indústria local.

Por António Sopa, in Savana de 17-08-07

Diploma de criação da cidade


Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar. Direcção Geral do Ultramar. 2ª Repartição. 2ª Secção. Decreto.
Tendo em consideração o notável desenvolvimento que tem adquirido a povoação da Beira, capital do território de Manica e Sofala, sob a administração da Companhia de Moçambique e sede do seu Governo;
Atendendo à excepcional importância da sua posição e manifesto valor do movimento do seu porto e do tráfico do caminho de ferro, que a põem em contacto directo com a Rodésia e que sensivelmente aumenta de ano para ano, fazendo d’ella um grande centro de navegação e de comércio, de largo e prometedor futuro;
Querendo dar público testemunho de apreço pelos esforços de actividade, que representa a completa transformação da povoação da Beira, em vinte anos realizada, e, ao mesmo tempo, comemorar a visita, que lhe vai fazer Sua Alteza Real o Princípe Real, D. Luis Filipe, meu muito prezado e amado filho;
Hei por bem decretar que a povoação da Beira, capital do território de Manica e Sofala, sob a administração da Companhia de Moçambique, seja elevada à categoria de Cidade com a denominação de – Cidade da Beira.
O Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar assim o tenha entendido e faça executar.
Paço, em 29 de Junho de 1907 – Rei – Aires de Ornelas de Vasconcelos.

05/08/07

Crónicas de José Cardoso (6)

Sabíamos, pelo que ouvíamos e líamos nos órgãos de comunicação social, que em vários pontos do país se procedia à perfuração do subsolo na procura de hidrocarbonetos e, suponho, que de outras riquezas naturais, nomeadamente nas regiões do Búzi e de Inhambane, possivelmente noutras menos conhecidas, porque menos ou nada divulgadas.
Corriam na cidade as mais diversas especulações sobre o assunto até que, em 1962, foi anunciada a descoberta de importantes jazidas de gás natural em Pande e Temane, na já referida província de Inhambane.
Pouco tempo depois fomos surpreendidos por um fenómeno nocturno curioso e de certo modo deslumbrante, ao mesmo tempo que os jornais e a rádio, anunciavam a deflagração de um violento incêndio num dos poços abertos em Pande.
Ao cair da noite, uma auréola alaranjada manchava o céu distante, a algumas centenas de quilómetros, parecendo que o poente suspendera por qualquer motivo transcendente, o seu declínio natural.
Convivemos com esta imagem nocturna e habituámo-nos a ela durante largos meses, até que, se extinguiu, por acção de técnicos especializados na extinção de incêndios semelhantes, vindos dos países que tinham a responsabilidade contratual de proceder a pesquisas de hidrocarbonetos no nosso, nomeadamente dos Estados Unidos da América.

Quase em simultâneo, a Beira era sacudida por outra notícia, que só pelo facto de não ser suficientemente divulgada nos órgãos de comunicação social por razões que desconheço, lhe dava uma auréola de autenticidade encoberta. Corria de boca em boca de forma especulativa, que no Búzi, teria sido descoberto petróleo. Oficialmente nada foi confirmado nem, que me lembre, desmentidos os rumores, e se o foi, ninguém deu crédito à notícia porque, as próprias fontes que as forjavam e disseminavam, eram porta-vozes de interesses económicos suspeitos e estavam por isso e por muitas coisas mais, sobejamente desacreditadas.
Fosse como fosse, verdade ou não, o que corria nos bastidores da murmuração, era o que constava como um facto real: alguns habitantes da vila do Búzi, estavam a utilizar nos seus automóveis, um novo combustível retirado dos poços ali abertos, a que deram o nome de “buzilina”.
Tive ocasião de observar uma garrafa contendo “buzilina” que um amigo teve a amabilidade de me mostrar e, constatei, que se tratava de um líquido transparente e incolor, tal como o álcool puro, e tinha um cheiro intenso muito activo, que se situava entre o odor daquele e o da gasolina. Essa amostra porém, não seria suficiente para que, por ela, pusesse “as mãos no fogo”, como garante da veracidade do que dela se dizia. Até porque, na vila, havia uma açucareira que também fabricava álcool puro para exportação e uso interno e sabe-se lá o que com ele se poderia urdir para explorar a credulidade de papalvos menores, em ambiente de esperança e de exaltação patriótica!...
De qualquer forma, ou porque continuasse a ser igualmente crédulo, ou porque as testemunhas que afirmavam ter sido o famoso líquido, a “buzilina”, retirado dos poços, me merecessem confiança, ainda hoje tenho dúvidas e me interrogo, se não teria estado perante um produto original.
Não houve nenhum esclarecimento sobre o assunto, nem que sim, nem que não, nem que também, e por isso, atribuímos à população da vila o benefício da dúvida, tanto mais que, logo a seguir, foi noticiado o encerramento definitivo dos furos de prospecção que haviam ali sido abertos, sem que até hoje se saiba das razões da decisão.
E então especulou-se - porque nunca se tornou a falar no assunto e por ter caído no esquecimento -, que se teria descoberto algo de importante e que a selagem dos poços, poderia querer dizer que a descoberta, ou não era suficientemente significativa para justificar a sua exploração, ou ficava como reserva, em “stand by”, aguardando por melhores oportunidades.
Se se tratou de um estratagema de diversão para enganar o “indígena” como era hábito dizer-se, então, foi muito bem conseguido porque, pelo menos eu, ignorante, porque também sou indígena de algum lugar, aceitei-o como verdadeiro, como aceito ser exacto o aforismo popular de que só existe fumo onde existe em combustão uma fogueira.

A talhe de foice, mas a propósito, transcrevo com a devida vénia um parecer sobre a ignorância, elaborado por Richard S. Lindzen, reconhecido cientista americano: “A noção de que se você for ignorante em alguma coisa e alguém lhe aparecer com uma resposta errada, tem de aceitá-la porque não tem uma outra resposta errada para dar, é como a cura pela fé, é como o charlatanismo na medicina. Se alguém lhe disser que deve ingerir caramelos para curar o cancro e você responder que isso é estúpido, ele diz, bem, pode sugerir alguma outra coisa? Será que ao responder que não isso quer dizer que você tem de ingerir caramelos?”
Bem. É razoável pensar-se que, o preferível, por via das dúvidas, é não virmos a sofrer de câncer!...

In “Memorandos da Vida” Volume III, de José Cardoso