05/04/08

Crónicas de José Cardoso (8)

O Simango, meu Amigo e colega na Farmácia Graça

O Simango, era um jovem aparentemente saudável mas sofria com alguma frequência de hemorragias nasais que o iam debilitando progressivamente e o impossibilitavam de trabalhar por períodos gradualmente mais longos e frequentes. Os médicos do “Hospital Indígena” – único estabelecimento onde lhe era permitido procurar a cura para o seu mal -, ou eram incompetentes e não atinavam com o diagnóstico correcto da sua doença, o que não acredito, ou, o que era mais grave, nunca se esforçaram o suficiente por descobri-lo para o tratarem convenientemente, esquecendo-se que o juramento hipocrático ou o código de deontologia médica, não discrimina o doente nem classifica as doenças em categorias, consoante a pigmentação da epiderme.

Não pretendo que este desabafo seja levado em conta como uma crítica plural à classe médica da época, ao seu saber e capacidade, sobretudo à sua ética, mas é-o sem dúvida à política segregacionista na saúde pública implementada pelo governo, que os hospitais da colónia seguiam porque não tinham outro remédionão o teriam de facto? Não tive conhecimento de qualquer oposição ou movimento da classe médica no sentido de forçar à alteração da política de saúde nas colónias - que eram afinal, o corolário de uma situação absurda, injusta e anómala.
Dirijo-a também e com conhecimento de causa, a um pequeno grupo que, ou era negligente, porque os há em qualquer profissão, ou carneiros do mesmo rebanho institucionalizado, porque os há também em qualquer pasto e situação, incapazes de impor os seus direitos e deveres, porque tinham a robustez moral necessária, o direito e o dever de o fazer com as armas de que dispunham que eram de importância crucial: o seu saber nos fios cortantes dos bisturis para argumentar e pôr em causa a saúde pública praticada. Preferiam acomodar-se às circunstâncias porque era mais cómoda essa posição inócua e, sem dúvida, lhes dava melhores oportunidades de “subir na vida”, com benefícios e remunerações de superior qualidade!...

Aos outros, que seriam a maioria e que a muitos conheci pessoalmente, respeito-os e admiro-os pela sua devoção deontológica, o seu saber e generosidade nas relações com o doente, fosse qual fosse, e a alguns, que também conheci, pela coragem que tiveram em assumir posições correctas no interior das barricadas da resistência e pela dedicação solidária que sempre demonstraram ter para com os mais humildes e desfavorecidos.
Tenho o nome de alguns na ponta da língua mas não os refiro, pelo receio de esquecer outros que de igual modo mereciam ser referidos. Guardo-os na minha lembrança com admiração e respeito, mas, sobretudo, em sua homenagem e memória.

O mal de que padecia o meu amigo e colega, tão jovem como eu, acabou por vencer a sua fraca resistência e levá-lo prematuramente à morte, pagando com ela – ouso afirmá-lo - como aconteceu a tantos outros, a “factura” definitiva da exclusão criminosa e da incúria.
De que morreu nunca o soube porque ninguém foi capaz de o dizer e que me tivesse constado, nem através de uma certidão de óbito que julgo não ter sido passada, ou porque tivesse morrido na palhota da Munhava enquanto dormia ou por se tratar possivelmente de burocracia escusada, de gastos de tempo e de papel!...
Tocou-me profundamente a morte inesperada do meu companheiro e junto dos restantes colegas, falei-lhes da minha intenção de estar presente nas exéquias fúnebres. Com alguma apreensão, colocaram-me dúvidas e preocupações relativamente à forma como poderia ser recebido pelos familiares e amigos presentes nas cerimónias. Não sendo normal a presença de brancos nos rituais fúnebres dos negros, aconselharam-me a não fazê-lo. Podia a minha presença por isso - pressentiam-no – mas também por razões das políticas sociais que nos dividiam, ser objecto de animosidade e desconfiança quanto à sinceridade dos meus sentimentos e propósitos.
A presença de um branco chorando a morte de um preto de quem se dizia amigo, à beira da sua sepultura, era motivo de estranheza e no mínimo, incómoda e causadora de justificada perturbação.
Seria eu de facto um amigo ou umbufo” disfarçado em carpideira para escabichar o ambiente?!... O , soube-o mais tarde, era tido como elemento suspeito e eventualmente perigoso pelas autoridades coloniais. Um jovem inteligente que via longe sem auxílio de dioptrias instaladas em incómodas lentes de vidro que o identificariam à primeira vista. Conversávamos muito e muitas das suas análises à situação surpreendiam-me pela lucidez e confiança num futuro diferente.

Conheciam-se algunsbufosque rondavam pela imensa Munhava e por outros bairros suburbanos mas esses eram pretos pelo que, em princípio, se mantivesse o propósito de estar presente nas exéquias, poderia na melhor das hipóteses ser olhado apenas com alguma reserva e apreensão e imputar-me-iam o benefício da dúvida.
Declarei-lhes pois, que a minha decisão era definitiva porque achava ser essa a minha obrigação e que estava disposto a enfrentar quem a quisesse pôr em causa e aos meus sentimentos para com o meu colega e amigo, não consentindo a minha presença pela simples razão de ser branco.

À hora aprazada para a cerimónia, compareci na sua residência. Uma humilde palhota de adobe implantada no interior dos terrenos pantanosos e insalubres da grande Munhava, vasto latifúndio urbano de cerca de oito milhões de metros quadrados - como refere Rui Cartaxana no seu livroEu, um homem a liquidar”-, pertencente a três conhecidas e “importantespersonalidades da terra: o Dr. Joaquim Teles Palhinha, os senhores, Armando Fernandes de Azevedo e José Martins Dias da Cunha. A todos ainda conheci, mas melhor o segundo, dono das organizações “Adolph Kung”, onde viria a trabalhar o meu amigo e poeta João Miguel Nunes a quem voltarei a referir-me e que, se a memória não me falha, me teria dito em qualquer oportuna ocasião, que o seu patrão, o senhor Armando de Azevedo, era ainda seu familiar, creio que primo, mas o facto não lhe dava outras regalias que não fossem as mesmas que dava a qualquer empregado seu, que não eram muitas aliás.

Chegado , nesse imenso latifúndio que era a Munhava, fui informado por uma vizinha, uma simpática velhota, que o cortejo fúnebre havia partido para o local das exéquias e que estariam nesse momento a iniciá-las. Com um indicador trémulo e ossudo, apontou-me ao longe uma pequena elevação de terreno onde se destacavam as manchas verde-ferrugem, do que me pareceram ser as largas copas de dois ou três velhos cajueiros. Depois, solícita ao meu pedido de ajuda, a velha senhora disponibilizou um de seus netos - um garoto amável mas pouco comunicativo, que me olhava de soslaio como se fosse um espécime raro a chafurdar no matope daquelas bandas - para me servir de guia e levar-me, ziguezagueando por caminhos entre charcos de lama e pequenos rectângulos familiares de arrozais, até uma ligeira elevação de terreno onde, à sombra de um frondoso cajueiro de entre os poucos que constituíam uma espécie de oásis no meio da imensa estepe de capim e pântanos, se aglomeravam familiares e amigos do . Preparavam-se para as cerimónias do derradeiro adeus ao ente querido que havia sido em vida, estou certo, filho e pai extremoso, esposo amado e respeitado companheiro de trabalho e quiçá de luta. De resistência ainda, que os olhares febris das muitas malárias e constrangimentos sofridos ao longo dos séculos nos exumavam lembranças esquecidas e anátemas terríveis, que me gelavam o sangue de medo e de vergonha.
Olhares arregalados de espanto e suspeição caíram então sobre mim de forma perturbadora e francamente hostil, com razões de sobra reconheço-o agora, porque na altura, ainda caminhava por atalhos sinuosos enterrando os pés nas lamas da vida, em procura dos muitos porquês e das razões para tantos!...
De alguns - porque não dizê-lo se foi essa a impressão com que fiquei – saíam chispas de intolerância e de ódio que convergindo sobre mim com a intensidade e o peso do tamanho dos sofrimentos me intimidaram e, alguns resquícios de cobardia me subiram pela coluna e quase me obscureceram o pensamento e enfraqueceram a determinação que se ressentiu na tremura e hesitação das minhas pernas.
Reagi a tempo e balbuciei algumas palavras sobre as razões, os deveres e os direitos que justificavam a minha presença no local; que tal como muitos deles me considerava amigo do e que para ali me tinha dirigido para, também como eles, lhe prestar as minhas últimas homenagens como amigo e companheiro de trabalho; para me despedir em suma de alguém, que sempre me merecera o maior respeito e consideração.
A reacção foi inesperada e de certo modo surpreendente: lentamente e com taciturno respeito, os homens, começando pelos mais velhos, abriram alas e convidaram-me a aproximar-me do caixão fechado onde, rodeando-o e cobrindo-o com os corpos estendidos num abraço colectivo, um grupo de mulheres carpia sons estranhos de dor e conformismo em suaves coros que ressumavam abatimento e melancolias.
À minha aproximação emudeceram as vozes e, afastando-se do esquife, ficaram expectantes às informações que de imediato lhes foram dadas em “chissena ou n’dau”, não estou bem certo, por um dos homens presentes, um velho, que me pareceu ser uma figura importante e respeitada na comunidade.
Tranquilizadas as mulheres, afastaram-se ligeiramente para permitir que me aproximasse, prontificando-se a abrir o caixão de forma a poder olhar pela última vez o rosto do meu amigo, prestar-lhe assim as minhas homenagens e despedir-me dele em definitivo.
Perante a minha recusa cerimoniosa em aceitar tão comovente procedimento, teimaram em abri-lo e fizeram-no com respeito e dignidade.
Parecia estar dormindo o . Com uma expressão serena num rosto mais pálido do que tivera em vida e um subtil sorriso, simpático mas arrogante, igual ao que sempre o caracterizara e que agora o acompanhava para todo o sempre, numa genuína e derradeira afirmação da sua verdade em relação aos homens e ao mundo dos outros.
Não consegui evitar - porque também nada fiz para isso e nem o conseguiria se o tentasse -, que o meu jovem amigo e talentoso filósofo, levasse ainda consigo e de mim, algumas lágrimas de culpa, de nostalgia e reconhecimento.
Dele fiquei com recordações de bons e infelizmente curtos momentos e de uma ou outra subtileza que caracterizavam uma filosofia própria e que me ajudaram a crescer, como por exemplo, a sua generosa e zombeteira preocupação em corrigir-me o português falado, emendando-me os termos de “pretoguês” que eu e a maioria dos brancos utilizava na dialogação diária com pretos, em soberba inconsciência anti didáctica, julgando que, procedendo assim, melhor nos compreenderiam e mais deles nos aproximávamos.
À afirmação de que: - olha , ontemnosso” foi ao cinema e viu um filme “maningue” nice!... Logo um sorriso lhe aflorava o rosto e respondia: - ah sim!... E como se chamava o filme quevosso” foi ver e que era muito bom?!... Conta a “nosso” tá bem!?...

In “Memorandos da Vida” de José Cardoso, a publicar.