27/04/07

O caldeirão do Chiveve

O censo da população da Beira, referido a 1 de Dezembro de 1900, acusava a existência de: 649 portugueses, 242 ingleses, 241 gregos, 68 italianos, 61 franceses, 46 alemães, 30 turcos, 20 austríacos, 17 americanos, 13 russos, 13 egípcios, 11 suíços, 10 holandeses, 8 romenos, 2 noruegueses, 5 brasileiros, 4 belgas, 4 suecos, 1 mexicano, 297 asiáticos, 1263 indígenas e 26 mestiços, num total de 3398 habitantes.
Em "A Cidade da Beira", na 1ª Exposição Colonial do Porto,
apresentada pela Comissão de Administração da Beira, 1934

24/04/07

Beira, nos seus primórdios

Entre 1896 e 1898, a Beira beneficiou de uma expansão na construção, com a criação de uma grande quantidade de empresas, e no último ano a sua população situava-se em 4223 habitantes (sendo 1172 europeus). Entre 1898 e 1902, a Companhia de Moçambique arrecadou 2,2 milhões de réis, que foram gastos principalmente na infraestrutura do porto, uma vez que a costa arenosa e os baixios à entrada do porto requeriam intensas obras de engenharia. Construiu-se um molho de pedra, os guindastes e armazéns foram melhorados e erigiram-se um quebra-mar e um farol. A partir de 1903 a Beira deixou de crescer tão rapidamente, uma vez que teve de competir com o sistema de caminhos de ferro da África do Sul pelo tráfego bastante estagnado da Rodésia. Em 1910, a sua população situava-se em 6665 habitantes (tendo efectivamente o sector europeu da população diminuído, nos dez anos anteriores, para apenas 860), mas a cidade estabelecera agora a sua função como sede administrativa da Companhia e principal porto que servia a Rodésia do Sul. Tornara-se numa cidade com um sabor nitidamente britânico. Criaram-se hotéis, bares e instalações desportivas para servir a comunidade britânica que, a seguir aos portugueses, constituía o maior elemento da população europeia. O carácter britânico da cidade era acentuado pela circulação da libra esterlina emitida pelo Banco da Beira.
em História de Moçambique, Malyn Newitt
Nota: na imagem o Clube Inglês, actualmente sede do BIM (Banco Internacional de Moçambique)

16/04/07

José Pádua

O artista plástico José Pádua nasceu na Cidade da Beira, em 1934, e reside em Lisboa desde 1977. Foi eleito Artista Plástico do Ano em 1966 pelo Jornal A Tribuna, de Moçambique, pelo seu trabalho enquanto pintor, decorador, ilustrador e gravador. Entre 1974 e 1978 trabalhou exclusivamente para a Galeria de Arte R. Rennie, Harare, Zimbabwe.
De 1979 a 1981 foi bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, frequentando cursos de gravura em metal e de li
tografia. Em 1980 e 1981 foi distinguido com os 2º e 1º prémios, respectivamente, em exposições sobre temas de Lisboa. 
Em 2002 publicou o livro O Fascínio de Moçambique. Tem também trabalhos nos domínios da escultura e azulejaria, bem como murais em cimento.
Entre 1962 e 2003 realizou mais de trin
ta exposições individuais em Moçambique, Portugal, Zimbabwe, África do Sul e Suécia.

Além de ter participado em inúmeras exposições colectivas faz parte do grupo A Tertúlia de Artistas de Moçambique que expõe todos os anos, desde 1984, em vários países do mundo.
Está representado em inúmeras colecções particulares em Portugal e no estrangeiro, nomeadamente na África do Sul, Zimbabwe, Malawi, Moçambique, Angola, Espanha, Suécia, Áustria, Brasil, Venezuela, EUA, Canadá, Israel,
Japão e Austrália.

Ilustrações: pormenores dos murais os pescadores (1967) e da sala VIP do aeroporto (1969)

O mussopo

Ao cantor Madala, lembrando Ponessa musi wango
Ao Pintinho, iluminando as andanças do passado


Porque seria que pelas águas estagnadas homens, mulheres e crianças passavam horas a fio, de dorsos curvados sob as cinturas, segurando latas cilíndricas sem fundo por onde metiam as mãos?
Eu apenas conseguia vê-los naquilo que supunha ser suas cogitações movidas pelos tempos coléricos e pestíferos. Parecia subsistir ali a sobrevivência. Mesmo parecia que os homens andariam a buscar ali as esperanças que tinham perdido, parecia ainda que as pessoas tentavam regatear umas esperanças que eventualmente teriam sobrado nas estagnadas águas. Até que alguém me dissera que andava equivocado, pois o pântano continha aquilo que meu ouvido percebeu tratar-se de um nome estranho: o mussopo ou ncone.
O esclarecimento por si não bastara. Que peixe seria aquele que se captura com latas sem fundo? Para melhor aclarar-me, afigurou-se-me necessário conhecer o "estranho bicho" que, conforme viria a saber, habita junto às faixas de rios salobros e ainda nos pântanos e lamas por alturas chuvosas e secas.
Um dia, os meus amigos Alexandre e João Nhabombo acabariam por me levar para o pântano que se formava após períodos chuvosos por detrás da Casa das Irmãzinhas de Caridade, na ex-zona da Fundação Salazar, no Macurungo. Uma vez aqui os tipos desataram a apanhar o "estranho bicho" a anzol, quando os outros convivas faziam-no com as referidas latas.
Levou bastante tempo até que visse um ncone a ser capturado. Cá deste lado de fora eu e meus amigos só víamos os pescadores palmilhando cada perímetro do charco. A gente contemplava os captores imergidos no pântano de dorsos inclinados, num ritual revestido de sepulcral silêncio por sua vez quebrado por movimentos a cada ondulação circular da água, com que se detectava e se localizava a presa, o que servia para espetar a armadilha sobre a área agitada. Era um exercício ritmado, em que se viam os protagonistas inclinando mais fundo e a meter a mão para dentro daquela armadilha a ver se apanhavam os peixes à mão.
O mussopo é um peixe, por assim dizer, incomum nessa classe de vertebrados, pois as suas barbatanas cobrem o dorso inteiro, prolongando-se até à cauda . E não só, de compostura e pele escorregadia, por não possuir escamas, o mussopo é deste modo difícil de apanhar à mão, correndo o captor o risco de ser violentamente atacado com uma feroz mordida que lhe pode custar a sua amputação.
Aliás, sendo a criatura feroz, nunca entendi o motivo que os levava a perseguir de forma acerada o "bicho" que detém a particularidade estranha de resistir não menos de três dias fora da água. Mas os protagonistas da faina evocavam o sabor da sua carne que diziam ser bastante apreciada, motivo porque lá pela Europa tornou-se uma espécie protegida, tal como se justificavam. E eu a sorrir da desculpa que então dava por esfarrapada, só agora acordei para a realidade.
O ncone tornou-se-me um bicho sadio porque pelas alturas de seca os apreciadores da sua carne apanham-nos naqueles solos aumentando as gangrenas, abrindo buracos de meio metro em diante para os alcançar sobre o lençol de água. Ele adquire essa particularidade no ciclo da hibernação, ao longo do qual ficam um período longo com a cauda espetada na boca.
Dizem que nesta fase a cauda contém micro-organismos essenciais à sua sobrevivência. Mas não me suporto a imaginar um "bicho" debaixo da terra com a cauda enterrada na boca.
Foi pois, esse, o meu primeiro ofício. Apanhar mussopo e cacanas, uma espécie de peixe de água salgada disponível nos canais do Chiveve. Aliás, verdadeiramente quem os apanhava (os mussopos) eram aqueles amigos que considerava bastante corajosos, enquanto o Djidja, outro amigo meu a viver em Durban, preferia pescar cacanas, que capturava comigo, na pesca desportiva, lá para as praias do Clube Náutico, Monumento dos Descobrimentos e Beira Terrace. Porém, admirava-me a habilidade e flexibilidade dos meus amigos que tiravam-nos das águas argilosas a anzol inventados a partir de alfinetes.
E quando não vendêssemos os mussopos, o bicho podia permanecer ao relento sem ser congelado. Era uma vantagem excepcional, ademais não poderíamos levá-los às geleiras dos pais pois sabíamos de antemão, tal daria sarilhos.
Enquanto não tivéssemos clientes que nos pagassem como deve ser, lá o pescado (mussopo) gozava os ares, refrescando-se ao sol ou à sombra. Tal como nos desse na real gana. Às vezes testávamos a resistência do bicho dando umas pedradas e açoutadas de vara. O bicho reagia dando gemidos semelhantes aos de um ser humano: "uff". Será por isso que alguém nos terá dito que não o devêssemos comê-lo porque o mussopo era uma reencarnação dos ancestrais. Aperfeiçoámos o nosso ofício quando descobrimos um freguês, esse que passou a levá-los a crédito de cinquenta centavos por unidade. O freguês jamais nos terá pago. Assoma assim uma dívida com juros que se viesse a liquidar hoje, atendendo às desvalorizações consecutivas que a moeda vem sofrendo desde então, resultar-nos-ia numas economias que dariam para comprar um apartamento.
Nós que pouco entendíamos de ciências ocultas até chegámos a acreditar que as plantas que emergem das tumbas são outras formas de reencarnação dos defuntos. É uma discussão que reservaria aos mais sabidos, embora ainda hoje a lembrar-me dos mussopos seja apossado pela impressão dos seus gemidos, que me pareciam os dos mortos a zangarem-se connosco, por sermos diabos em pessoas. Terá sido este facto que me levara uma vez a confessar-me ao padreca, pois vi-me atingido por manifesto sentimento de culpa, se bem que em toda aquela área onde os buscávamos os indígenas haviam usado para acoitar a alma dos seus.
O mussopo tem uma derme verde-cinzenta, que o tornava ainda menos visível a meio do lodo, o que nos dificultava ainda mais a pesca. Assumiu outra dimensão no meio da malta. E tornou-se este pescado o mascote de um jogador do clube de Belinho e Sérgio Sadique, hoje donos do Benfica do Macúti. Estou a falar do avançado Memba, o mais negro de todos os negros que alguma vez terei visto na vida. O Memba dificilmente se distinguia na penumbra crepuscular daquela tarde em que os adversários metiam bolas na nossa baliza e o tipo, como um mussopo, zás catrapuz surgia escorregadio e a correr e a fazer o gosto com o pé direito, após driblar o nosso guarda-redes.

Por Adelino Timóteo

Diário de Moçambique, Página Diálogo, 14 de Abril de 2007

Nota: O mussopo é um peixe da família dos murenídeos tais como a enguia, o congro e a moreia.

08/04/07

As incursões do mar

Ao princípio deste século, a praia da Beira, trecho que vai da Praia Nova ao Macúti, avançava algumas centenas de metros sobre a área que é hoje o mar. Ao largo do ponto onde assenta o Miramar e no prolongamento da rua que o ladeia a oeste, estava a árvore grande que servia de ponto de referência à navegação e que, nas cartas inglesas, tinha a denominação de «conspicuous tree». O cabedelo que vai presentemente da Praia Nova à ponta oeste do actual plano de urbanização, não existia. Quando foi escolhido o local para o Farol do Macúti (da Ponta Macúti, como era então denominado), inaugurado em 1904, julgou-se que este ficaria perfeitamente defendido de quaisquer incursões do mar, tal a extensão de algumas centenas de metros de areias altas, ou dunas, com vegetação, que o defendiam do lado sul.
Toda a área compreendida entre a Praia Nova e a zona leste do Macúti, parecia igualmente defendida e, se assim não fosse, não teriam sido construídos o antigo Farol da Ponta Gêa, a casa do Inspector Arnald, a de Heitor Morgado, a do padre Maxwell e, por fim, o Farol do Macúti, construções estas que, com largos intervalos, se al
inhavam ao longo do mar, separadas deste por aquelas centenas de metros de areias soltas, ou dunas, com vegetação.
No entanto, por 1907-1908, as incursões do mar começaram. Logo ao princípio, caiu a árvore grande, a «conspicuous tree», com grande desgosto dos navegantes e, desde então, até 1919-1920, as incursões foram contínuas e, pode dizer-se que, cada maré equinocial trazia novos estragos. Ruíram assim aquelas centenas de metros de defesa; e, ao mesmo tempo, ia-se formando um cabedelo no prolongamento da Praia Nova, para oeste. De certo modo, parecia haver grande deslocação de areias, porque, à proporção que as praias iam sendo corroídas, em toda a sua extensão, o cabedelo aumentava em comprimento e altura.
Por outro lado, a formação deste parecia obra providencial, porque se constituiu um quebra-mar e defesa da cidade, impedindo o batalhar forte das ondas do alto, contra a muralha. Estamos convencidos de que esta já não existiria, ou teria tido de ser reconstruída, se aquele batalhar não tivesse cessado.

Nas marés de águas vivas e, sobretudo, nas equinociais, a rebentação sobre a muralha oferecia um
espectáculo admirável e, ao mesmo tempo, assustador. Aquela rebentação incidia principalmente sobre o trecho que fica por detrás do actual edifício Paládio e sobre o ângulo que a muralha forma ao lado da antiga casa J. D. Martini. A cada choque, era a água atirada a dezenas de metros de altura em seguida o forte ruído e abalo, semelhantes aos de um bombardeamento. Ainda se encontram pela Beira alguns dos seus habitantes desse tempo e, decerto, se lembram do receio que havia de que o pequeno burgo de então viesse um dia a desaparecer sob a acção daquele batalhar das ondas.
Veio, pois, o cabedelo, obra providencial da natureza, a remediar o grande mal e perigo, fazendo de quebra-mar e evitando que a ondulação do largo viesse a desfazer-se sobre aquela defesa.
Mas, nesse tempo, outro mal havia, que era a entrada franca das águas pelo extremo sul da muralha. Por aí vinha a ondulação até às construções situadas à direita da actual Avenida da República, ameaçando, cerca de 300 metros, no prolongamento da muralha, obra esta que ainda hoje existe, quase soterrada, e que se denominava, ao tempo o «perré» da Ponta Gêa.
Foi útil porque quebrada a entrada violenta da ondulação; mas, mais útil ainda, foi o cabedelo que acabou também com m
ais esta ameaça.
Não havia técnicos na terra que pudessem determinar as causas da grande erosão da praia, o novo perigo que havia surgido, e recomendassem o necessário remédio. Fez-se obra por tentativas: pensou-se na defesa pelo sistema de esporões; construíram-se muretes com sacos de cimento perpendiculares e oblíquos à linha de água, etc. De tudo quanto ocorria se foi fazendo um pouco, mas a erosão avançava sempre e, no fundo da área que hoje é mar, ao largo da praia, devem encontrar-se essas defesas que não foram, talvez, suficientemente sólidas para oferecer a necessária resistência.
E as opiniões variavam, quanto àquelas causas. Afirmavam os marítimos conhecedores da costa que se estava operando qualquer mudança no curso das correntes, no Canal de Moçambique; diziam outros que as mudanças de «thalweg», no estuário, estavam a influir na entrada e saída das águas das marés e, daí, a erosão; finalmente, e por último, veio a observação colhida no Observatório, de que se havia alterado a direcção do vento predominante, o que estava a influir no movimento das águas, causador da erosão.
Seja como for, a maior das ameaças apareceu em 1919-1920, quando o mar chegou aos alicerces do Farol do Macúti. Reunidas as entidades competentes para o estudo do grave problema, foi resolvido proceder-se à construção imediata de um novo farol provisório, a cerca de 2 quilómetros ao norte do Macúti, e apear-se a lanterna do farol ameaçado. Esta segunda parte entrou logo em execução: foi construído um andaime do lado do farol, com a altura deste, e a lanterna foi apeada, com despesa que seria, hoje, de alguns contos. Havia, no entanto, quem ti
vesse a opinião de que era este o melhor expediente e que se deveria tentar, por todas as formas possíveis, a defesa da construção.
Acabava de ser suspenso o serviço do Farol à navegação e apeada a lanterna, quando chegou à Beira o comandante Raul Nunes Frade, engenheiro hidrógrafo, contratado naquela altura, para o Serviço da Companhia de Moçambique.
Posto ao corrente do grave problema, foi o Comandante Nunes Frade de opinião de que se deveria tentar nova defesa do farol e, assim, mandando rebocar para o local um dos velhos barcos que se encontravam abandonados no porto, fê-lo encalhar mesmo em frente daquela construção. Não tardou que as areias começassem a juntar-se e a almejada defesa fosse restabelecida. São passados 32 anos e ainda hoje se mo
stra que o expediente deu os mais lisonjeiros resultados. Escusado será dizer que a lanterna voltou para o seu lugar e o farol continuou, como ainda hoje, a prestar serviços à navegação.
Outros cascos foram, s
eguidamente, trazidos e encalhados noutros pontos da praia, entre o Macúti e a Praia Nova, sendo o resultado o mesmo, juntaram-se novamente as areias, impedindo a erosão. Prova isto à evidência que, como primeiro expediente, é este o processo de que é preciso lançar mão para evitar a repetição do perigo.
Muito bom serviço prestou à cidade aquele distinto oficial e, recordá-lo e dizer que se lhe deve um profundo agradecimento, não distante do que merece quem salva outro da morte.
Há alguns anos, recordando estes transes do passado com o ilustre oficial, dissemos-lhe que era necessário que a sua obra tivesse continuação: novos encalhes por toda a praia, de forma a consolidar a sua defesa, e permitir melhores obras no futuro. Esteve plenamente de acordo, e afirmou: «Sim, é preciso escorar a praia toda».
E quando não houvesse cascos de barcos, que se construíssem jangadas, de qualquer modelo tosco, mas sólido, que servissem para o mesmo fim: impedir a deslocação das areias e fazê-las juntar.
Vem este relato a propósito da Estrada Marginal. Há quem tenha criticado e condenado esta obra, com o fundamento de que, prejudicando a duna e sua arborização, prejudicava também a defesa da cidade contra o mar. Temos a impressão de que estão em erro. Dunas, muitas dunas, cobertas de vegetação, existiam em mil novecentos e oito, quando começou a acentuar-se a erosão, e todas elas foram tragadas pelo mar. As dunas só por si, no nosso caso, não são tudo e isso ainda agora se mostra no trecho desprotegido da praia que vai da Praça da Índia até ao Macúti, ao qual é preciso acudir.
São precisos os encalhes na própria praia, enquanto se não constroem esporões, muralhas ou outras obras adequadas. Vem do passado uma lição altamente aproveitável; cumpre não a esquecer.
E quanto à estrada marginal assentemos, com a verdade, que a obra é boa, oportuna e de valor turístico incontestável; assim o reconhece também o público, como se mostra pelo uso que faz dela. O que é preciso é melhorá-la, asfaltá-la e levá-la ao Macúti, logo que os recursos o permitam.
E, repetimo-lo, escore-se a praia toda, como muito bem recomendava o Comandante Nunes Frade.

por J. Oliveira da Silva
[Diário de Moçambique, ano II, nº 415, 28 de Fevereiro de 1952, p. 1 e 2]
texto enviado por António Sopa

05/04/07

A Porta da Cidade

Vivi a minha infância e parte da adolescência na sua vizinhança. Estou a falar do edifício do Almoxarifado. Num espaço praticamente despovoado de outras construções, a sua fachada ganhava um relevo que, noutras circunstâncias, nunca teria. Só alguns anos depois vim a conhecer a antiga geografia do local. Foi aqui que praticamente a minha cidade nasceu e tentou sobreviver nos primeiros anos da sua periclitante existência. As velhas fotografias deste local revelam-nos um casario pobre, profundamente embrulhado, construído em madeira e zinco. Este material foi, nos finais do século XIX e princípios do seguinte, a base praticamente de todas as cidades africanas, nascidas repentinamente, nos alvores do colonialismo moderno. No antigo comando militar do Aruângua, as primeiras casas de zinco foram construídas pelo governo português, em 1892, para albergar as tropas da expedição a Manica, no seguimento das rivalidades anglo-portuguesas naquela zona. Depois generalizou-se, inevitavelmente. De tal forma que, nos anos 20 do século XX, ainda havia duvidas quanto às vantagens e desvantagens do uso do zinco ou da alvenaria. Foi necessária uma demonstração pormenorizada do director das Obras Públicas na Comissão Urbana, salientando fundamentalmente os seus benefícios do ponto de vista financeiro, para quebrar a campanha então existente a favor do primeiro destes materiais. A alvenaria começou, apesar das dúvidas, a ganhar terreno ainda na ultima década do sulo XIX. As primeiras construções deste tipo são feitas pelos particulares, como seja o caso da agência do Standard Bank (edifício ainda hoje existente), mas o armazém do Almoxarifado, construído em tijolo de betão, integra-se ainda nesta fase pioneira, já que a sua construção se iniciou em 1897, num local onde antes existiam algumas barracas de madeira e zinco, pertencentes ao governo. A instalação do almoxarifado na nova construção e a sua separação da Repartição da Fazenda só virá a ocorrer dois anos depois, após a construção dos mobiliários e outros equipamentos.

O almoxarifado esteve aqui instalado até 1903, altura em que virá a ser alojada provisoriamente a repartição dos correios. Anteriormente, esta última estava instalada numa velha casa abarracada, de madeira e zinco, que viria a arder em Janeiro de 1902, com o alastramento do incêndio no Beach Hotel. A esta situação juntava-se ainda o facto de se pretender colocar o Almoxarifado sob a dependência directa da Fazenda. Esta junção não se tinha efectuado ainda porque, no edifício da Fazenda, não existia espaço para a sua instalação. Numa fase inicial, os correios estiveram mal alojados mas, posteriormente, após a transferência do almoxarifado e a execução de algumas obras no armazém, pôde-se ali instalar as seguintes divisões: sala para o público, sala para a correspondência apartada em “boxes”, sala para a posta-restante e para encomendas postais e registos. Numa outra parte do edifício encontrava-se o gabinete do director, o arquivo e o depósito e, no restante, estavam ainda aquarteladas algumas praças da Guarda-Fiscal. Com a nova instalação, foram ainda adquiridas 300 caixas de ferro para a correspondência apartada, tipo alemão, permanentemente abertas ao público, ficando o recinto iluminado à noite e com uma sentinela permanente. E, durante alguns anos, foi considerada, “uma das melhores instalações dos serviços da Companhia de Moçambique”.
A partir de 1906, o director dos correios sugere que as “quatro portas voltadas para a nascente” sejam transformadas em janelas envidraçadas, pois nos dias de chuva as mesmas tinham de ser fechadas, privando a repartição de ar e luz. Mas propunha ainda uma modificação mais radical, com a ampliação do edifício em casa de habitação, construindo-se para isso um primeiro andar. As razões apresentadas pelo chefe daquela repartição prendiam-se com o facto do pessoal dos correios ser dos mais mal pagos no território de Manica e Sofala. Julgava este que podia reverter esta situação, dando-lhes casa ao mesmo tempo que se conservava o mesmo ordenado.Esta última sugestão nunca chegou a ser efectuada, apesar de esta ampliação se tornar inadiável, agora motivada pelo grande desenvolvimento que se tinha dado neste serviço público.
Os correios, que se tinham instalado aqui provisoriamente, mantiveram-se no armazém até 1929, altura em que se mudaram para uma casa alugada, situada no segundo andar do edifício Lacerda. Nessa altura, o velho armazém era já considerado “desprovido das condiç­ões higiénicas indispensáveis a uma repartição onde trabalham diariamente 50 indivíduos”, mas também porque já era olhado como inestético e de uma pobreza extrema.
A partir desta data podemos apenas levantar suposições sobre o que terá então acontecido. Provavelmente terá voltado à posse da Repartição da Fazenda, já que tinha sido construído propositadamente para os serviços do Almoxarifado. Pelo menos, na década de 60 do século XX, estava já entregue a estes serviços, ainda que não existisse ali ninguém. Penso que era apenas um armazém daqueles serviços e assim terá permanecido mesmo após a independência do país. Na década de 80, pude localizar ali os arquivos da antiga Repartição de Fazenda da antiga Companhia de Moçambique. Foi primeira e única vez que estive no seu interior. Mas é também desde aquela altura que se pretende dar um futuro mais condigno ao edifício, já que era então um dos mais antigos da cidade da Beira. O historiador Alexandre Lobato, então director do Arquivo Histórico de Moçambique, numa primeira tentativa de descentralização destes serviços públicos, pretendia instalar nele a delegação centro do Arquivo Nacional. Ficou apenas a ideia, já que nunca viria a concretizar-se.
A entrega do velho edifício do Almoxarifado à associação Casa do Artista, por decisão do Ministério das Finanças, veio repôr a justiça, garantindo-lhe um futuro condigno, ao mesmo tempo que se tornará num espaço cultural ao serviço dos beirenses. Uma nova etape começa agora na sua existência, após as obras de recuperação e transformação.
Texto de António Sopa, revista "Índico"

A CASA DO ARTISTA é uma associação cultural que de acordo com os seus estatutos ambiciona desenvolver um vasto projecto cultural, que prevê vários tipos de actividades incluindo a formação e divulgação artística em campos como o teatro, artes plásticas, fotografia e cinema, etc.
Apesar da sua recente criação em 2003 e de ainda não possuir uma sede própria tem desenvolvido inúmeras actividades culturais, tais como: exposições de pintura e fotografia, sar
aus culturais, espectáculos de rua, lançamentos de livros, debates culturais e ainda uma “Feira do Livro” em parceria com o Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e o Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa. De notar que nesta feira foram vendidos em 2,5 dias cerca de 17.000 livros.
Consegui
u, depois de muito esforço, uma concessão por 30 anos do ex-almoxarifado da Beira, edifício cuja construção se iniciou em 1897 (possivelmente o mais antigo edifício em alvenaria da cidade), agora em ruínas, que pretende restaurar para sua sede.

02/04/07

Exposição de Sitoe "O Passado, o Presente e o Futuro", Dezembro de 2006

Conheci há muitos anos atrás, aqui na cidade da Beira, um simpático jovem, delicado, afável, bonitão e talentoso nas artes de pintura. Esse conhecimento com facilidade passou a uma forte amizade, face a um partilhar de inúmeras cumplicidades.
Ainda jovem viajou um pouco o mundo e rapidamente se tornou num dos poucos pintores de referencia desta nossa cidade.
Mais tarde teve de partir atrás dos seus sonhos e instalou-se na capital, em Maputo.
Mas sempre fui acompanhando a evolução, o crescimento daquele que sonhou “num sonho cheio de magia, qu
e era artista e se chamava Sitoe”.
As suas telas com as suas cores, as suas formas, o movimento, contam­-nos as suas magias, levam-nos
a um mundo de encantamento, um mundo que nos traz uma Arte (com A maiúsculo) cheia de calor e sensualidade.

Este amigo é um apaixonado pela mulher, mulheres cuja beleza o inspiram quase que como uma obsessão. Através delas os seus quadros transmitem-nos mensagens de amor, ternura, voluptuosidade.
Sendo um homem totalmente devotado à pintura e preocupado pelo desenvolvimento das artes não me admirei de saber que é actualmente um dinâmico dirigente do “Núcleo de Arte” de Moçambique. Também não me admirei que com o seu coração do tamanho deste país se tenha particularmente preocupado com a situação dos velhos artistas moçambicanos.

Como amante de arte que sou não posso deixar de vos contar como este amigo e artista me recorda um poeta brasileiro, já falecido embora imortal, “Vinicius de Morais”. Diferentes formas de arte mas uma forma idêntica de nos provocarem.
Assim do poema “Receita de Mulher” dedico-te os seguintes versos:
......... É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Como ao âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um resto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo.
...........................................................
Sei também que nunca se esqueceu desta nossa cidade da Beira, onde amadureceu e transformou o seu talento em arte.
Por isso este amigo está hoje aqui connosco e traz-nos o passado, o presente e o futuro.
Benvindo a casa Silvério Salvador Sitoe.
(texto de Maria Pinto de Sá, Presidente da Casa do Artista)