19/03/07
Desenvolvimento Cultural da Cidade da Beira
DESENVOLVIMENTO CULTURAL DA CIDADE DA BEIRA.
Por : Silva Dunduro (*)
(Tema apresentado num debate cultural promovido pela Casa do Artista em 16-11-06)
Não vamos neste debate apresentar ideias acabadas sobre o desenvolvimento cultural da cidade da Beira. Não se trata de uma sessão de perguntas e respostas ou seja onde os convidados levantam questões e os apresentadores do tema respondem. Não é isso o que se pretende. Pretende-se sim que todos os presentes contribuam com o seu saber ou experiências vividas dentro ou fora desta cidade.
Quais foram as dificuldades encontradas para a apresentação deste tema?
A primeira;
A primeira é a inexistência de informação sistematizada sobre o movimento cultural da cidade da Beira. Existem muitos estudos sobre a cidade da Beira, contudo não se encontra em nenhum, algo de substância que possa facilitar a pesquisa para o tema. Por isso, este texto foi elaborado tendo como pano de fundo as marcas da arte pública da Beira (pintura, alto e baixo relevos, escultura e murais).
A segunda;
É a ausência total de fontes ou de locais ou ainda de instituições de investigação de aspectos antropológicos sobre a cidade. Como se sabe a cidade da Beira não possui nenhum depósito museológico activo que contribua para a recolha de dados. Algumas das marcas que provavelmente podiam servir de ponto de partida encontram-se em avançado estado de degradação ou simplesmente ruíram. Contudo, esperamos que os antropólogos nascidos nesta cidade algum dia se preocuparão em nos trazer uma abordagem mais rica, que não seja apenas na perspectiva etnolinguística, pois, como defende Evans Pritchard, “... a antropologia social é, pelo menos em teoria, o estudo de todas as sociedades humanas e não só das sociedades primitivas...”
A terceira;
A terceira dificuldade reside no facto de não haver condições para uma análise conjunta do desenvolvimento cultural devido ao contexto político e histórico da época. Quer dizer, os espaços culturais que se foram criando eram concebidos segundo interesses sociais dos grupos que foram se fixando na cidade da Beira tendo em conta o seu carácter cosmopolita. Este aspecto fez com que parte de valores culturais fossem considerados marginais em relação à cultura dominante ou hegemónica.
Deste modo, a participação das comunidades da periferia limitou-se aquilo a que o sistema chamava de cultura indígena.
Perante estas dificuldades vou apresentar este tema tomando em linha de conta três períodos:
1. O desde finais de 1800 até meados de 1900;
2. O período de meados de 1900 até à independência;
3. O pós-independência.
1.
Em finais dos anos 1800, a cidade da Beira conheceu um grande impulso na construção de infraestruturas de serviços públicos.
Logo a seguir, nas primeiras duas décadas dos anos de 1900, surgiram vários estabelecimentos hoteleiros, como por exemplo os “ Avenida Hotel”, “Savoy Hotel”, “Queens Hotel”, etc. Estes estabelecimentos hoteleiros visavam responder à crescente procura de serviços para os visitantes vindos de diferentes regiões do país e do estrangeiro. Como se sabe, o "hinterland" era e continua ligado à cidade da Beira.
Interessa frisar aqui que este desenvolvimento sócio- económico e cultural não era inclusivo a todas as comunidades ou estratos sociais da cidade. Isso porque à medida que a ”civilização” ocidental ou asiática ia ocupando espaço, as comunidades locais afastavam-se cada vez mais dos novos ocupantes. Ainda hoje, nota-se esta tendência. Muitos dos nativos encontram-se fora do espaço urbano e mesmo das zonas suburbanas.
O desenvolvimento da cidade e o seu carácter cosmopolita como já fiz referência, fez com que as minorias se preocupassem em criar espaços culturais próprios onde fosse possível apresentar suas práticas culturais.
No caso dos grupos sociais de origem asiática, por exemplo, embora houvesse relações entre essas comunidades, de modo algum encontraram encaixe na cultura portuguesa, a dominante.
Como resposta a esta lacuna, começaram a surgir clubes e associações das diferentes comunidades residentes. Assim, as comunidade hindu, inglesa, goesa, chinesa, entre outras, iniciaram a construção de infraestruturas próprias. Estes espaços visavam promover a identidade cultural de cada grupo social, como explica Domingos do Rosário: “um facto comum é o de que quase todos os clubes eram frequentados por determinados grupos sociais e étnicos. Eram nesses clubes onde regularmente se encontravam para os seus tradicionais convívios – jogos, gastronomia, música, cerimónias, etc.”
Esta perspectiva demonstra claramente a preocupação dos grupos minoritários para a promoção e preservação da sua identidade cultural dado que não cabiam no contexto da cultura portuguesa ou pelo menos, na política cultural para a colónia, como já se disse. Aliás, como acontece em todas grandes cidades onde naturalmente a cultura é heterogénea.
Um dos exemplos mais salientes quando se fala dos subgrupos preocupados com a sua cultura é a comunidade chinesa residente nas regiões de Manica e Sofala.
Fundaram na cidade da Beira o “ Chee Kung Tong Club” ou “Clube Chinês”, em 1922.
Se concordarmos com Guy Rocher, ao definir cultura como “um conjunto ligado de maneiras de pensar, de sentir e de agir mais ou menos formalizadas que, sendo apreendidas e partilhadas por uma pluralidade de pessoas, servem, duma maneira simultaneamente objectiva e simbólica, para organizar essas pessoas numa colectividade particular e distinta”, então facilmente perceberemos o porquê do surgimento destes clubes e sua função social, pois, como se sabe o desenvolvimento sócio-económico contribui para uma maior expressão da cultura.
A procura da afirmação cultural tendo como base a cultura do ponto da origem e a passagem de testemunho a outras gerações era obviamente uma das principais preocupações dessas comunidades. Um espaço delimitado que, embora pequeno, constituía território autónomo onde fenómenos seculares tinham lugar.
Qual foi o papel do Governo no processo do desenvolvimento cultural nessa altura?
Concordando com o ponto de vista de Fernando Marques Pereira, que classifica a cultura como ideologia de classe dominante ou como instrumento de hegemonia, o governo colonial permitiu neste período o surgimento de clubes nocturnos. Estes espaços tornaram-se centros difusores da cultura dominante. Além destes, foram construídas casas de cinema para aproximar a cultura ao cidadão distante da metrópole. O interesse quanto a mim, não terminava apenas em servir o cidadão. Mais do que isso, a cultura desempenhou papel fundamental para a fortificação da sua hegemonia.
A complexidade da vida urbana e a ideologia do governo em relação às comunidades indígenas fez com que nos bairros suburbanos houvessem culturas típicas segundo afinidades etnolinguísticas.
Por exemplo, grupos vindos do sul de Moçambique, eram tratados por “mabazaruto” mais tarde “manhambane”, independentemente das coordenadas geográficas da zona de origem. Grande número dessas comunidades vivia nos Bairros de Inhamudima e Chipangara Mussanga.
Esta atitude demonstra claramente a intenção de dividir para reinar. Ou seja, o conceito de país não existia em toda a extensão do território que é hoje a república de Moçambique. Consciente da importância da cultura para a identidade dos povos, as culturas típicas foram simplesmente ignoradas.
Tendo em conta o factor etnolinguístico que servia para separar ou juntar pessoas, como já fiz referência, as comunidades do sul tinham danças típicas: chigadigadi, zorre e makwaela. Um dos seus habituais locais era o recinto da Dona Adelaide, nas mediações da escola primária de Chipangara.
Estes locais, marginalizados pela cultura dominante, transformaram-se num dos maiores centros de lazer para as comunidades desses bairros e não só.
Além desta função (diversão e lazer) também tinham a função antropológica que a olho do governo colonial não tinha qualquer significado. Na verdade serviam para transmitir e preservar valores típicos desses grupos sociais.
Enquanto isso, as comunidades das regiões do norte da Província de Sofala, atraídas pelo desenvolvimento dos caminhos de ferro de Moçambique começaram a povoar terrenos baldios formando bairros suburbanos igualmente afastados do centro ou do núcleo da cidade ou ainda dos luxuosos bairros que iam sendo erguidos como são os casos de Palmeiras I e II.
Deste modo a cidade da Beira começa caracterizar-se cada vez mais pela heterogeniedade não só das comunidades vindas de outros continentes mas também pelas vindas de diferentes pontos do território, como nos mostra Gans, ao afirmar que “... a população urbana é constituída por indivíduos heterogéneos, arrancados que vindos de outros sistemas organizacionais são vítimas da anarquia social da cidade”.
É assim que enquanto na zona de cimento aflorava a cultura mais elaborada e cuidada, obediente a padrões universais, contrariamente, nos bairros emergentes, o forte era a cultura popular.
Esta visão do governo colonial fez com que o desenvolvimento cultural seguisse duas direcções como tenho estado a demonstrar.
2.
O segundo período pode ser considerado como o ponto mais alto do desenvolvimento cultural da cidade da Beira. Trata-se da década de 60. É no meu ponto de vista, o que mais se destacou em realizações de grande vulto.
Um dos legados desta época que quanto a mim, constitui ponto de referência, foi a inauguração do Auditório Galeria de Arte a 20 de Agosto de 1967, actual Casa Provincial da Cultura de Sofala.
Aliás, o surgimento do Auditório Galeria de Arte na cidade da Beira, duma ou doutra forma está relacionada com mudanças do regime em Portugal. Foi uma reacção à política cultural que com o seu “autoritarismo” procurava criar condições para uma ideologia cultural baseada na propaganda do regime. Julgo que o Auditório é uma das demonstrações de descontentamento da comunidade portuguesa residente na cidade da Beira, 34 anos depois da criação do Secretariado da Propaganda Nacional que no dizer do próprio Salazar, não era um instrumento do Governo mas um instrumento de governo. Tinha como objectivo “elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que realmente é e vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora, como unidade independente no concerto das nações ...” (Fernando Marques Pereira).
Apesar do Auditório ter surgido como forma de rejeitar o regime, podemos concordar que mesmo assim a cultura portuguesa foi tomada de algum modo como um veículo “civilizador” do ponto de vista do colonizador.
Ao analisar a plástica da cidade e seus autores, nota-se que poucos moçambicanos, mesmo aqueles que tinham aceite a assimilação, tiveram possibilidade de participar nesse movimento.
Portanto, havia um segmento apenas para satisfazer a comunidade portuguesa e as restantes manifestações indígenas não partilhavam nesse desenvolvimento. Logo, a ideia de “elevar o espírito da gente portuguesa.”
Qual foi o papel da sociedade civil, do governo e das instituições privadas?
Retomando Fernando Marques Pereira quando diz : ”... os nossos governantes caseiros que da cultura fazem pretexto, uma pose, um pedestal em cima do qual se tenha a ilusão de que existem”, nota-se neste período a cedência por parte do Governo colonial no sentido de que as comunidades locais mesmo as de origem europeia cultivassem uma identidade própria.
Pressionado pelos ventos de mudança e pelo novo espaço geopolítico, interessava ao Governo colonial “largar a corda”.
Uma das formas dessa tendência é no meu entender a cedência do espaço onde foi erguido um palácio das artes em pleno “coração” de Moçambique. A construção do Auditório Galeria de Arte constitui um dos marcos mais importantes do desenvolvimento cultural da cidade da Beira como já disse. No acto da sua inauguração, em 1967, o escritor Gouvêa Lemos disse que se tratava de ”... homenagem impessoal indiscriminada, a uma cidade inteira, à qual se deve até agora, e da qual se espera, justificadamente, a continuação do edifício até à sua completa realização”. Espelha-se nestas palavras o sentido de liberdade espiritual que não iria perdurar por muito tempo.
Nota-se também que a obra provocou uma grande mudança. A cidade da Beira nunca mais seria a mesma. Esta ambição e privilégio que a Beira teve de ser pioneira em ter um espaço verdadeiramente cultural e parte da sua comunidade poder apresentar suas aptidões artísticas foi uma importante conquista no mundo das artes.
Para perceber a importância do Auditório Galeria de Arte para a cidade da Beira, retomo uma vez mais Gouvêa Lemos. Quando ele se referia a este empreendimento a dado passo afirmou: ”legado de pioneiros, será o testemunho de que ainda jovem, a Beira começou a preocupar- se com a sua promoção cultural”.
Importa referir que a sociedade civil jogou um papel importante para que o Auditório fosse erguido. Foi a iniciativa da sociedade civil que deu origem a uma das ideias mais brilhante que a Beira já teve, pelos menos na perspectiva cultural.
Contudo, não se pretende dizer que antes da inauguração da Galeria não houvesse manifestações culturais. Como mostrei no ponto 1, muito antes do Auditório Galeria de Arte (actual Casa Provincial da Cultura), a cidade da Beira já era um palco de manifestações culturais sobretudo de Arte Pública. Existia um pouco por toda a cidade uma forte presença deste tipo de arte, principalmente nas artes plásticas.
Nesse período uma das incontestáveis figuras é José Pádua. A sua obra encontra-se distribuída em quase todos os bairros de cimento da cidade. Desde o desenho, passando pela pintura e desaguando no alto e baixo relevos. Grande parte da arte pública nesta cidade é da sua autoria. É possível apreciar a sua obra nas paredes exteriores do Clube Ferroviário da Beira, na sala VIP do Aeroporto Internacional da Beira, na sala de espera do Gabinete do Presidente CMB (pintura), no ginásio da Universidade Pedagógica delegação da Beira entre outros lugares públicos e privados.
Além destes pintores, em 1970, Malangatana Valente Ngwenha, o mais notável pintor deste país, pintou “Vovó Chipangara está Zangada” na parede frontal do Auditório-Galeria de Arte. Este mural encontra-se actualmente completamente degradado e a clamar por retoques urgentes. É provavelmente o único mural deste artista na cidade da Beira, pelo menos em lugares públicos e se calhar em toda a região centro e norte do país.
Shikhani, contemporâneo de Malangatana, pintou um mural no Centro Social da actual Casa Provincial de Cultura.
A sua plástica é marcada principalmente pela escultura e alto relevo, pelo menos no que toca a arte pública. Os rituais de nascimento, casamento e de morte representados em alto relevo no Palácio dos Casamentos é, no meu ponto de vista uma das principais obras públicas que Shikhani deixou nesta cidade.
À plástica de Shikhani junta-se a de Carlos Beirão (já falecido), homem multifacetado e multicultural. Beirão, não deixou grandes marcas de arte pública e nas artes plásticas plásticas em geral mas, não se pode negar o seu contributo para o desenvolvimento da cultura do Chiveve.
O papel das instituições
As instituições do Estado e privadas jogaram um papel muito importante para o desenvolvimento cultural da cidade da Beira.
Para além da fundação Calouste Gulbenkian, principal impulsionador da produção da arte pública, instituições como a Celmoque, Shell, Banco Nacional Ultramarino e Banco Pinto & Sotto Mayor, entre outras, foram importantíssimas.
O estágio que se atingiu deveu-se em grande medida a estas instituições. Este facto demonstra que a cultura não é algo isolado do processo da evolução sócio-económica. Fica igualmente demonstrado que a ausência da participação de instituições inibe o desenvolvimento cultural de qualquer sociedade.
3.
A terceira e última fase, no meu entender pode ser subdividida em duas partes.
A primeira que vai de 1975 até meados da década de 80, é banhada pela euforia pós independência. Caracteriza-se pelo resgate da identidade cultural negada ao povo durante séculos. Como dizia Gil Pinto, “a independência abriu as portas para os artistas. As bandas dos subúrbios apareceram na zona do cimento para tocar a sua música, particularmente no Auditório-Galeria de Arte.”
A cultura popular tomou o espaço. Emergiu. O canto e dança, a música ligeira e outras formas de expressão cultural ganharam corpo. A cultura é do povo e para o povo. O tambor pela primeira vez entra no espaço onde antes não podia.
Surgiram grupos de canto e dança em todos os cantos da cidade. Na escola, no bairro, na empresa, etc. Os ventos da revolução tomaram conta de tudo e de todos.
A cultura tomou a dianteira para a moldagem de um homem novo e para a consolidação da unidade nacional. A libertação significa tornar-se cidadão com identidade cultural e com nacionalidade. A cidade da Beira não deixou em mãos alheias este grande movimento que teve grande repercussão na nova perspectiva da cultura.
Desta maneira a Casa Provincial da Cultura, transforma-se num dos melhores espaços difusores da cultura.
Que transformações ocorreram nessa altura?
No meu entender, uma das principais transformações foi o gradual desaparecimento da arte padronizada. Ou seja, o populismo substituiu de imediato o desenvolvimento cultural dos anos 60. A arte pública foi destruída, particularmente a escultura que simbolizava o colonizador. De modo geral, a música, o canto e a dança, a pintura, o teatro, etc., com rigor profissional desapareceram pouco a pouco.
Este facto viria a traduzir-se numa cultura onde o folclore é a fonte de inspiração. A preocupação pela técnica é relegada para segundo plano.
Uma das razões pode ser o problema que inicialmente expliquei: a criação de dois espaços, onde num havia a preocupação de uma cultura (dominante) mais elaborada e com padrões universais, como é o caso de Pádua, e noutro, onde a cultura indígena era desenvolvida nos bairros sem qualquer acompanhamento técnico.
Quer dizer, durante o sistema de governação colonial as periferias não tinham a possibilidade de aprender técnicas sobre as artes cénicas e visuais ou mesmo audiovisuais como acontecia aos artistas da zona de cimento.
Alguns que haviam aceite a assimilação e tiveram acesso às escolas oficiais e mais tarde ao ciclo preparatório, aprendiam algo relacionado com trabalhos manuais. Mesmo assim, não se podiam considerar como aptos para dar resposta ao grande movimento que nascera da revolução em pé de igualdade com os nomes a que fiz menção.
Nessa altura qualquer um podia considerar-se pintor, escultor, bailarino, coreógrafo, actor, etc. Por exemplo ainda hoje, existem indivíduos que se auto-intitulam de coreógrafos só porque estiveram durante algum tempo a dançar num grupo polivalente; dramaturgos, porque criaram um grupo de teatro que durou apenas seis meses; pintores, porque gostam de pintar; e assim por diante.
O reducionismo que se assiste hoje em relação à concepção da cultura, pode ser herança desse período, pois muitos pensam que na cultura não há especialização, o que conta é a experiência individual. Por isso qualquer um pode considerar-se artista e até se apelidar de coreógrafo ou de qualquer nome que lhe apeteça.
A geração de artistas deste período não teve a mesma oportunidade que Pádua e Shikhani tiveram.
Quais as razões que motivaram esta tendência? Qual é o papel das instituições neste momento em relação à cultura?
Estas questões podem ser respondidas se retomarmos a ideia de Fernando Marques Pereira, segundo a qual “a cultura acompanha as transformações da sociedade, da estratificação social e da própria organização do Estado.”
Na altura, o novo Estado pós-colonial precisava impor a sua ideologia e a cultura torna-se um dos principais veículos.
As potencialidades que já existiam, particularmente nas áreas da música e da dança, iriam ocupar lugar de destaque. Muitos desses artistas nunca tinham ouvido falar de espaço cénico, do palco convencional. Surgiram nesse período, algumas figuras que se destacaram, sendo Álvaro Zumbire uma referência obrigatória, quando se fala das artes cénicas. Aliás, Álvaro Zumbire viria a ser um dos pioneiros na criação da Companhia Nacional de Canto e Dança. Nessa altura, as artes plásticas (pintura e escultura) perderam o brilho e o seu peso.
A segunda parte inicia-se em finais de 1980 até ao presente momento.
Relativamente à pintura, para além dos já citados Shikhani e Carlos Beirão, nos finais da década de 80 surge uma geração de pintores com visões diferentes.
Esta geração, já com alguma formação na área das artes plásticas, revoluciona a cultura na cidade da Beira, continuando o sonho deixado na década de 60 quando foi inaugurado o Auditório-Galeria e Arte.” Os seus nomes sonantes são: Helder do Nascimento Ferrão (já falecido), Silvério Sitoe (a residir em Maputo), Silva Dunduro e Anísio Páscoa.
Mais tarde surgem Paolos e Alex Dunduro, . Estes são no meu entender os que mais se destacaram.
Na literatura o nome mais relevante é sem dúvida o do poeta Heliodoro Baptista, para além de Bassane Adamogi, e mais recentemente de Adelino Timóteo.
No caso da dança e música, com os gira-discos que os “madjonjones” traziam da África do Sul, começaram a fazer-se bailes ao ar livre que ficaram conhecidos como “tchingwere”. Por exemplo, na Mananga e Munhava, onde vivia uma numerosa comunidade ndau, era frequente haver manifestações culturais como as Marozwi, Mandoa, Mandiki e outras danças espirituais. Enquanto isso, o bairro da Manga transformava-se num dos maiores pólos de convergência dos residentes dos subúrbios da Beira. Nessa altura surgiram vários grupos musicais, sendo de destacar os Irmãos Beirenses, O. K. Jazz e Andorinha Rock da Munhava. São assimilados que tocam principalmente música de outros artistas mas também música própria.
Conclusões
Sobre este tema, penso poder-se concluir que:
1- Desde o surgimento da cidade da Beira, como acontece em qualquer outro lugar onde se desenvolvem grupos humanos, que a cultura está presente. Isto é, à medida que a cidade vai ganhando corpo a partir de diferentes grupos sociais provenientes de diferentes lugares, foram-se moldando características específicas para cada um. Por isso, uma das primeiras reacções foi o surgimento de clubes. Os clubes, como foi mostrado por Domingos do Rosário, tinham como objectivo promover as identidades culturais desses grupos.
2- O surgimento dos clubes era uma resposta da heterogeneidade cultural, pois, a cultura oficial era a portuguesa. Todas as outras culturas ou grupos que não se identificassem com a cultura hegemónica ficavam à margem dela. Porque a cidade é constituída por diversos grupos homogéneos, estes procuravam sempre criar espaços, ainda que pequenos como é o caso de um clube, mas que condensavam toda a complexidade cultural dessa comunidade. Esta atitude leva a que grupos minoritários apesar de se submeterem a certos princípios mantenham os aspectos mais originais. O exemplo do clube chinês é o mais evidente na cidade da Beira. Apesar dos chineses aprenderem português, jamais deixaram de se comunicar em chinês, utilizar pauzinhos, e outros rituais básicos da sua identidade.
3- Enquanto se assistia ao desenvolvimento urbano e cultural da cidade, os nativos eram cada vez mais isolados deste processo. Como resultado, a participação no desenvolvimento cultural no centro urbano por parte da maioria negra era quase nula.
Enquanto hindus, ingleses e outras nacionalidades se preocupavam em criar seus clubes, os indígenas não tinha espaço para promover a sua cultura no centro urbano. No entanto, na periferia, as culturas típicas eram praticadas com muita euforia, o que ficou demonstrado no período imediatamente a seguir à independência nacional.
4- A cidade da Beira, nesse período, atingiu elevados níveis de desenvolvimento cultural nas diferentes manifestações culturais, sobretudo nas artes plásticas como pode ser constatado em quase todos os lugares públicos da cidade. A música, o teatro e a literatura tiveram o seu maior impulso com a inauguração do ”Auditório-Galeria e Arte” a 20 de Agosto de 1967.
5- O estágio actual de desenvolvimento cultural é mau. Apesar de haver esforços empreendidos pelos artistas, não existe correspondência por parte das autoridades quer municipais quer governamentais, nem por parte de qualquer outra instituição.
Por exemplo, o atelier da Casa Provincial de Cultura que foi concebido para os artistas plásticos, foi dividido para outros fins, depois de, em 2003, os artistas serem chamados para retirarem as suas obras. A sala de exposições que acolhia mostras quer individuais quer colectivas está abandonada.
Também o CMB, presta mais atenção ao desporto do que à cultura em geral e particularmente às artes plásticas. Em nenhum momento foi realizado nesta cidade um evento de artes plásticas de relevo onde o CMB comparticipe como acontece com as realizações desportivas.
Mais grave ainda é que as iniciativas da sociedade civil são tidas como um desafio à Casa de Cultura e por isso as autoridades tentam marginalizá-las.
Por exemplo, a "Galeria Bangwé”, que surgiu como uma forma de minimizar o problema de espaço por um lado e para divulgar o que se faz na Beira nas artes plásticas por outro, e a própria "Casa do Artista" foram consideradas pelas ditas autoridades da Cultura como um desafio para enfraquecer as actividades da Casa de Cultura.
Este comportamento, impede o desenvolvimento das artes plásticas na cidade da Beira.
(*) Geógrafo e artista plástico, membro fundador da Casa do Artista