10/07/07

Shikhani : “É necessário aventurar”

Entre as imagens fantasmagóricas e tenazes que me povoam a memória, sem dúvida, estão as de Shikhani. Cabeças, narizes, abdómens, lábios e olhos enormes, descomunais membros superiores e inferiores descalços. Os homens de África, as mulheres de África. Corpo e alma. Alma e corpo e coração. Sensibilidade e faro: África. Personagens monstruosas, flageladas pelos ventos “este” e “oeste”.
É ele que capta as expressões do rosto, os gestos semoventes. Capulanas, calções. Pai da natureza e identidade que concorre para dentro de si: a negritude. Sedentas de afirmação, aqueles olhares esbugalhados, uma toda cultura e povo encarnados num homem. Porta-voz duma maioria oprimida, depauperada pelos cinzentos séculos de escravismo.
Leio-lhe as obras percorridas de memória, idos os anos distantes, longínquos, idas as indagações e inquietações à volta do conteúdo das mensagens reunidas nos quadros fixados às paredes da sua casa do Macurungo. Ele ausente/presente do circuito da convivência. Pelas “Europas” e África repartido. Mais propriamente no dizer de Bertina Lopes corpo além fronteiras, “aqui a alma”. O aqui cognomina-se um dos bairros dos arredores de Maputo, muito afastado do rebuliço citadino, onde, corridos tempos distantes, removida a barreira da longitude e da latitude, o fui visitar, levado pelo Mablinga, o filho, esse amigo que acedera acompanhar-me at´junto do “monstro Shikhani, o Ernesto Pais (nomes próprios com posteriormente vim a saber da pessoa que insistimos chamar Shikhani.
Porquê a necessidade de encontar Shikhani? Nostalgia, e mais do que isto, debitar a dívida, o tributo, pelo que a sua imaginação me tinha dado a ver, desdde a fértil idade. Sou nostálgico do passado e do futuro. Precisava apascentar novas obras suas com os olhos, que mais uma vez me terão consentido o privilégio de estar diante às suas cores aguerridas, alegres, o traço seu que corre o mundo à busca de insigne notoriedade de África. Como noutro tempo percorri demorado a sua inventiva, acariciei a impressão digital que lhe é característica, mesmo que seja à espátula ou pincel. Com ela exorcismam-se fantasmas e demónios de qualquer que seja o observador. Lá está a respiração, o coito, o açoute e o acoitar-se, a pervagação, a dúvida. Fidelíssimo à matriz, à raíz, à essência. A dele e a de muitos de nós. Sem cisão com a partida.
Não posso contemplar os quadros de Shikhani sem que, no final, me dê conta de que teria sido anestesiado por um antídoto que nos faz reféns por extensos minutos.
Até um seu mural destruído pelas forças da ignorância no Centro Social do Macurungo, nesta Beira que também é sua, ecoa dentro de mim. Reverbera. As sinergias das forças anímicas que lhe davam o prumo tornam possível os acordes do peito e do sangue. A mesma veia.
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Tinha perdido o fio à meada. Falava do vulto ausente/presente Shikhani agora a passar-me um recado que me terá ficado após a privação: “Na arte é necessário aventurar”. Que quererá ele dizer? Persistência, perseverança e, acima de tudo, firmeza.
De facto, na arte como em tudo, “é necessário aventurar, digo sempre cá para comigo. Shikhani resiste na memória privada e comum. Dentro de mim registo uma casa situada numa zona pacata da cidade capital, mas que nem por isso deixa de conter um homem com uma obra cujo valor transpõe o seu diminuto átrio. Um homem, por assim dizer, que se passeia por todos os cantos do mundo transportando as ressonâncias e raízes, desde Marracuene a Macurungo, de Macurungo a Maputo. Um homem desigual a tantos, de nenhuma aspereza.
Ao despedir-me do “monstro” sedimentou-se-me na memória aquilo que desde há anos dele tenho visto na Beira, no Palácio dos Casamentos, no Sandromar, hoje Tropicana, no restaurante da Casa da Cultura.
Uma pintura que passa e ficará para todo o sempre. Do outro lado do portão o vulto do aventureiro postado de bruços, corpo escondido, e a cabeça transpondo-se cá para fora, a vista suplantando para lá do mundo exterior, acenando-me a mão, à hora de bai.

texto de Adelino Timóteo


1 comentário:

Luisa Hingá disse...

Olá!
Descobri o blog graças ao António Sopa. O meu marido nasceu aí na Beira. Vou ler tudinho.
Gostava que fosse ver o meu blog Voando em Moçambique.