27/06/07

Crónicas de José Cardoso (2)

No ano do meu enlace em 1957, com a Laura, minha actual esposa, José Soares Martins, sobrinho do Bispo da Beira, D. Sebastião Soares de Resende, assume a chefia da redacção do “Diário de Moçambique” emprestando-lhe uma dinâmica e uma cultura de mudança, que muitas esperanças trouxeram aos citadinos e alarmaram sobremaneira as hostes fascistas da “União Nacional” e os governos provincial e central da colónia.

Alguém teria dito na altura, que a redacção do “matutino” era o ponto de encontro do aguerrido e numeroso grupo do “reviralho” do sítio. Este facto, e as notícias que íamos recolhendo todos os dias, das furtivas escutas nas emissoras que emitiam em português e que alguma confiança nos mereciam, como as da “Rádio Brazzaville”, “Rádio Moscovo” e “B.B.C.”, davam-nos algum alento e a certeza de que a mudança estava próxima e que era irreversível. Também as notícias inseridas num ou noutro jornal estrangeiro como o “L’Humanité” ou o “Portugal Democrático”, este último editado em São Paulo no Brasil, e ambos de circulação subterrânea, limitada e clandestina. Chegavam-nos às mãos por diversas vias, e constituíam, sem sombra de dúvida, motivos mais do que suficientes para manter em polvorosa desusada os “unionistas” e de uma maneira geral todos os colonos ineptos, vazios de ideais e de bom senso.

Preocupado o poder com o evoluir de uma situação desumana e monstruosa que ele próprio criara, alimentando práticas arbitrárias e devaneios de grandezas territoriais, tão impossíveis quanto injustas, começava a dar mostras de fraqueza e de incapacidade para controlar e conter a voracidade do “monstro” que ele próprio concebera, e que acordara dos sonos mitológicos ancestrais, que séculos de escravidão e letargia, transformavam em lendas.

Quanto a nós, os “democratas” – as aspas são voluntárias, porque a experiência me dizia que nem todos o eram nem a muitos reconhecia condições para que o viessem a ser algum dia -, a conjuntura era propícia para nos manter mais unidos, activos e confiantes. Pelo correio, ou porque a vigilância abrandasse em alguns momentos na censura às encomendas postais, ou porque não considerassem algumas publicações de carácter cultural potencialmente perigosas, recebíamos com alguma regularidade a “Vértice” e a “Seara Nova” que muitos de nós assinávamos. Com mais regularidade a primeira que a segunda, talvez pelo que esta pudesse sugerir nas cabeças dos censores, com a combinação das “explosivas” palavras “Seara” e “Nova”. Vocábulos transcendentais de múltiplas leituras.

Estes jornais e revistas corriam de mão em mão cumprindo a sua missão de informar e educar consciências, mas sobretudo de estimular ideias e acções solidárias, a exemplo da “Chama Olímpica” que de mão em mão percorre países e gentes, proclamando os nobres ideais da solidariedade, e da necessidade de todos se conservarem sãos, tanto de corpo como da mente.

Mantínhamo-nos, ou fazíamos por isso apesar de tudo, razoavelmente bem informados sobre a evolução dos acontecimentos, quer dos que aconteciam na região, que nos eram escamoteados por uma censura feroz, umas vezes cega, outras imbecil, quer nos que ocorriam no resto do mundo, que também passavam pela mesma peneira de rede fina.

A 14 de Fevereiro de 1958, o “Diário de Moçambique” escrevia: “ Esta África está na encruzilhada da sua história (...) e teima-se em continuar em África a fazer colonialismo!...” Inesperada e ousada opinião numa época e num regime em que, o simples facto de a ter não era saudável, e muito pior era publicá-la em letra de forma.

Outras incursões pela verdade e pela denúncia de abusos, injustiças e despotismos, não tivemos oportunidade de as ler, a não ser através de cópias clandestinas e panfletárias que passavam de mão em mão. A acção das tesouradas da censura, obrigavam o jornal a aparecer a público com grandes manchas a negro, nos lugares onde se presumia deverem estar crónicas, artigos de opinião ou simplesmente notícias importantes e de interesse público, que não interessava ao regime dar a conhecer, porque eram libelos insofismáveis contra o regime e o acusava. Porém, até essas manchas negras ou brancas, a dada altura, pela frequência com que apareciam, passaram a ser por sua vez censuradas e proibido o seu uso como subterfúgio, interditando ao jornal a possibilidade de, dessa forma, informar o leitor da frequência e extensão dos cortes do censor e do tamanho da sua prepotência e desavergonhice.

Apercebíamo-nos no entanto com natural satisfação, que o “Diário de Moçambique” começava a ser o “calcanhar-de-aquiles” dos poderosos e dos políticos de direita, que defendiam uma imprensa cinzenta, cobarde e bajuladora, tanto da local, representada pelo “Notícias da Beira” do Victor Gomes, como pelo “Notícias” de Lourenço Marques, capital da “colónia-província”, representado pelo capitão Vaz!

A isso se recusava a sua direcção, nas pessoas de D. Duarte de Almeida – o elefante branco como era conhecido -,e José Soares Martins, mas também dos seus trabalhadores como o Rui Cartaxana, o Fernando Gaspar, o Correia Paulo e o novato e prometedor Mário Ferro, que são tantos quantos os que a minha memória ainda conserva. Ele provocava ainda sem dúvida, o desnorteio das “bússolas” orientadoras da polícia política e dos “bufos” sem política, que começavam a aperceber-se da existência de um preocupante avolumar de alvos para tão poucas munições.

Do “Arquivo Histórico de Moçambique” de Outubro de 1989, retiro, com a devida vénia, alguns apontamentos de um artigo de José Soares Martins, como contributo para a história do jornal: “Se o “Diário de Moçambique” viria, a partir dos últimos anos da década de 50, a ser considerado como um órgão de imprensa extremamente incómodo para a autoridade colonial, que, por isso, o carregou de multas e o suspendeu por várias vezes (a última das quais pelo espaço de 30 dias), de facto, nos primeiros tempos da sua publicação, nada indicava tratar-se senão de um jornal perfeitamente acomodado ao “establishment”. Mais adiante continua: “ Foi um escândalo que o jornal, e um jornal propriedade da igreja, na campanha eleitoral em que interveio o general Humberto Delgado, tomasse uma posição liberal, não privilegiando o candidato oficial.

O que hoje é ridículo era, então, motivo para represálias e dissabores de toda a ordem. Como era grande escândalo nesse tempo, um jornal apesar de tudo produzido em África, relevar os acontecimentos da política africana. Como lhe provocou suspensões o atrevimento de noticiar os primeiros acontecimentos que assinalaram o começo da luta de libertação.


In “Memorandos da Vida”III Volume, de José Cardoso

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