29/05/07

A BEIRA em 1891 e 1892: Vista por António Enes (2)

Uma visita à Beira

Já havia um panorama de povoação a impor-se à vista. Tinha sido varrido do pontal do Chiveve o montão de lonas pardas e encerados negros com que se abrigara o corpo expedicionários, e sobre o seu tapete fulvo prolongavam-se duas fileiras de casas de coberturas vermelhas e paredes verdes, apaineladas por janelas de ombreiras e caixilhos brancos. Mais para o fundo, num terreno descoberto à borda do rio, estampava-se na tela espessa do arvoredo o perfil duma edificação com soberbias e galanices palacianas, diante de cuja frontaria verdejavam debuxos dum jardim, donde subiam trepadeiras e enroscavam-se nas nervuras dum caramanchão abobadado e a entretecerem um gradeamento, dentro do qual passeava uma sentinela de arma no braço. Para o lado da antiga residência do comando militar do Aruângua, formavam pinha as construções, os tapumes, os armazéns, os esqueletos ainda nus de novas vivendas e sobre esse confuso acervo de paredes, de tectos, de janelas, de portas, de toldos, de estacarias, de formas, de linhas, de cores hiantes, ondulavam bandeiras de muitas tintas, algumas com letreiros flamantes. Pelo país fora na direcção da Ponta Gêa a cortina de vegetação estava de quando em quando remendada com quadrados encarnados ou cinzentos de edifícios. Os barracões da alfândega tinham tomado uma aparência mais civilizada, pintado o seu zinco, eliminadas as coberturas de colmo, e saíam deles a miúdo vagonetas Decauville, que iam largar fardos e caixas nos armazéns, resvalando nos carris de ferro estendidos a todo o comprimento da povoação. Raro se entraria no porto sem lá encontra fundeado algum paquete; o «Countess of Carnarvon» sargenteava frequentemente no fundeadouro rebocando barcaças de carga; na entrada do Chiveve estavam quase sempre varadas lanchas e pangaios; montavam-se embarcações em picadeiros improvisados na praia; e as vistas que penetravam pelos arruamentos descobriam pequenos vultos, movendo-se em todos os sentidos sobre a areia. A Beira já tinha vida. Estes progressos tinham sido devidos em parte a uma acção oficial, em parte à iniciativa particular, estimulada pela febre do ouro.
Uma determinação governativa tinha transferido para a foz do Pungué a sede do distrito e do concelho de Sofala, suprimindo o antigo comando militar de Aruângua, e esta transferência levara à Beira um funcionário prestante, o tenente Alpoim, em cujo cérebro não lampejariam faculdades transcendentais de administrador, mas era laborioso, provido e arranjado como uma boa dana de casa da velha escola portuguesa, e aprendera na penúria do mato tirar grandes proveitos de mínimos recursos. Esse activo militar, constituído depositário do formidável espólio do corpo expedicionário, em cujo inventário avolumavam muitas casas destinadas ao alojamento de oficiais e soldados, que tinham ficado dispersas nas praias, tábua aqui, estaca acolá, chapas de zinco aos montões, tudo baralhado e em parte estragado, aproveitou daquela tralhoada quanto era aproveitável, descobriu utilidades no que parecia mais inútil, e não só arranjou instalações tais ou quais para os serviços públicos, se não que acudiu às necessidades de desenvolvimento da população, sem para isso tirar um real dos cofres distritais, antes assegurando-lhes um rendimento apreciável. Realizou até fantasias sumptuosas! Tendo destinado a antiga residência do comandante militar, já então desmascarada das fortificações caricatas, para hospital e farmácia, engendrou para a sede do governo um edifício relativamente vasto, ligando umas às outras e unificando diversas casas de oficiais, e prendeu-o com regalos e adornos que em nem em sonhos me atreveria a apetecer na mísera palhota em que meses antes vivera. Assim dotou-a com uma sala de jantar onde caberiam os convivas de Sardanapalo; e quem se regozijava com a sua vastidão e o seu pé direito, não percebia logo que estava simplesmente dentro duma barraca Tollet, antigo hospital que as artes de Alpoim transformara em fábrica de indigestões. O esqueleto de ferro de outra barraca semelhante aguardava que crescessem e bracejassem as plantas que o enleavam para formar um átrio abobadado de verdura. Posteriormente a fábrica ensoberbeceu-se com um pavimento superior, o primeiro que a Beira viu levantado do chão de cuja larga varanda se alongava a vista pelo mar fora. Lá dentro havia alcovas para hóspedes com belas camas de colchões de Madagáscar, mosquiteiros diáfanos, e uma sala de visitas com estofos e étajères; pequenos pátios interiores guardavam a provisão de chuva em tanques de ferro, sobre os quais esvoaçavam pombos e se empoleiravam aves de orgulhosos diademas; filtros purificavam a água; candeeiros pendentes com vidros lavrados coavam luz baça nas estâncias; comia-se a clássica canja bem preparada em louça fina de Vista Alegre. Quase todo esse luxo, porém, se não tinha vindo de Sofala, tinha em alguma parte a marca CEM que as lavagens ainda não tinham apagado. E, cá fora um colossal cevado, algum tanto simpático, costumava aproveitar a sua liberdade coçando os couros atoucinhados contra as pernas nuas dum cipaio, que fazia sentinela de honra ao mastro em que aos dias santos se arvorava a bandeira portuguesa.
Esta obra de arte veio contribuir para a morte do infeliz artista. Localizara-a mal. Situada à beira do Chiveve, o rio repassava-a de humidades e enfrascava-a nos aromas da sua vasa, além de lhe oferecer duas vezes por dia, o espectáculo do seu fundo negro sulcado por uma rede de filetes de água amarela, onde parecia estarem a borbulhar biliosas. Mas se fosse só isso! Desrespeitosas para com a autoridade, as correntes começaram a furtar sorrateiramente a areia em que ela firmara o seu alcaçar, prometendo a si próprias de ir com ele no atoleiro. Travou-se então uma luta assanhada entre o Alpoim e o rio. Por mais que ele opusesse à corrosão pérfida, estacarias, entulhos, faxinas, engenhocas, o Chiveve destruía-lhe com uma espreguiçadela todas as obras de defesa, e afinal já se entreviam ondulações de água pelas fendas do sobrado dum dos quartos. Alpoim, porém, não se rendia, e quanto lixo produzia a Beira todo ele vazava no talude esboroado para o ver nadar horas depois nos jorros da vazante. Foi essa a preocupação afanosa dos seus últimos dias. O desgraçado tinha febres, como nunca vi em ninguém. Nos acessos de frio tiritava com tal violência que a cama sacudida pelo seu corpo convulso estremecia a casa toda, e urrava, rangia dos dentes, ululava como um bando de feras assanhadas; metia medo. Tomava, porém, um pouco de quinino em bolos feitos com mortalhas de cigarros e no dia seguinte quem ia saber dele com receio de ouvir dizer que estava morto, encontrava-o à solheira na ladeira do Chiveve, com os pés cravados no lodo, dirigindo o trabalho, talvez planeado nos intervalos dos acessos, de proteger os alicerces da casa com barricas de farinha e latas de petróleo cheias de areia!
Depois de ter alojado as repartições oficiais, o incansável trabalhador armou as casas de madeira e zinco, que lhe restavam disponíveis, para as arrendar a particulares por conta do Estado, e assim remediar a falta de habitações, tão grande que estava dificultando a imigração. Fez com elas um pequeno bairro armado na ponta do Chiveve, e erigiu outras muitas nos lugares mais procurados pela população. Eram modestas, mesquinhas até, e insalubres. Semelhavam grandes barracas de banhos, medindo geralmente 10 metros por 6, e sendo esta acanhada superfície dividida interiormente em três ou quatro cubículos. Aqueciam como fornos, vedavam mal a chuva, os seus sobrados gretados recebiam todas as exalações do solo; nalgumas a chapa de zinco nem era revestida por dentro de taboado. Assim mesmo alugavam-se à porfia por fabulosas rendas, por 8, por 10, por 12 libras cada mês, para moradias ou para estabelecimentos. Alpoim tirou, pois, só dos casunchos, um rendimento anula de sete ou oito contos de réis, e, animado por este milagre financeiro, empreendeu explorar o movimento da formação da Beira para dotar a sua administração com receitas próprias, que a emancipassem do cofre central da província, sempre avaro e refilão para com os distritos. Empenhou-se exagerando até o empenho, em tirar partido de tudo quanto, no espólio do corpo expedicionário podia ter um valor realizável, e se na realidade abusou das necessidades da população também lhe proporcionou benéficas satisfações. Tendo prolongado a linha Decauville, que a expedição encetara para seu serviço, pela rua principal da vila, alugou aos comerciantes o serviço das vagonetes para descarga das mercadorias. Atamancou os fornos de panificação deixados pelas tropas, e arrendou-os à indústria particular. Extraiu receita da mais vil barraca, do mais desmanchado telheiro; fez render as embarcações; achou quem lhe comprasse por bons preços víveres avariados e sobejados do Corpo; e deste modo, tendo feito a mudança e a nova instalação das repartições do distrito, tendo desenvolvido materialmente a Beira, tendo sido uma espécie de providência, cara mas útil, dos seus habitantes e imigrantes ainda juntou nos cofres distrital e no do concelho, quantias de que os pobrezinhos nem suspeitavam a existência! Quando o visitei em fins de Maio de 1892 estava ele radiante! Tinha à cabeceira da cama, num cofre de ferro usado, também herdado da expedição, uma dúzia de contos de réis, com cujo auxílio, disse-me ele, poderia ocorrer a todas as despesas da sua administração durante mais de um ano sem pedir um real a Moçambique! Que ufania! Nenhum outro distrito da província podia gabar-se de tal façanha. A Beira era uma mina; Sofala estava independente!
Não faltava, porém, quem murmurasse da sua sovinice, e o facto é que para ter casas para arrendar desatendeu necessidades públicas. As dos serviços judiciais, por exemplo. A prisão era tão segura que um criminoso trepou pela paredes fazendo estribo dos buracos, levantou o telhado e fugiu. Ao juiz e delegado de Inhambane, então em correcção na Beira, fora dado para habitação, cartório e tribunal, um casebre onde o vento que se engolfava por baixo da cobertura fazia esvoaçar a papelada, e que ia convencendo os pobres magistrados de que havia lá dentro coisa má. De vez em quando desaparecia-lhe um processo. O delegado achou-se uma bela manhã sem a gravata e o colarinho que deixara à noite à cabeceira da cama. Entrariam ladrões? Os pretos opinavam pela intervenção dos feitiços. Depois de muitas inquirições, levantam-se tábuas do sobrado, e descobrem-se por baixo um arquivo jurídico e um guarda-roupa coleccionados pelas ratazanas.
Também os munícipes lastimavam que não tivessem maior impulso os serviços da edilidade; deve dizer-se, porém, que o diligente Alpoim, que presidia à comissão municipal, já andava tratando de construir nas ruas principais passeios de argamassa, e tinha um plano mirífico para iluminar a povoação com candeeiros feitos de latas de bolachas!
Mais seguros e valiosos eram, porém, os progressos da povoação devidos à livre iniciativa particular. Os últimos meses do ano anterior foram desastrosos para a Beira e para o seu comércio. Retirou-se o corpo expedicionário que colectiva e individualmente deixara dinheiro grosso nos armazéns e nas baiúcas; parou de todo o trânsito para o interior; a construção da linha férrea foi adiada e pareceu problemática; principiou-se a descrer das riquezas auríferas de Manica. A estação das chuvas, passou-se, pois, triste e desalentadamente nas margens do Pungue, e as inundações de Fevereiro e Março arrastaram na sua invernia muitas esperanças e confianças. Tão grossas e impetuosas foram que em Neves Ferreira alagaram as casas, obrigando um destacamento que lá esteve a empoleirar-se no vigamento das coberturas e depois a fugir quase a nado, e na Beira as águas cortaram e levaram pedaços enormes de areal; de uma vez pegaram no pátio interior dum estabelecimento comercial, com as pilhas de madeira que nela estavam arrumadas, e foram esfacelar e espalhar aquela ilha flutuante no mar e no porto.
Mas, tanto que melhorou o tempo e soou voz nas colónias do sul, que a construção do caminho de ferro estava definitivamente contratada com um tal Van-Lanne, testa de ferro da South Africa, voltou a foz do Pungué a ser demandada por emigrantes, ávidos de explorar, não os jazigos metalúrgicos, não a produtividade da terra, mas essa construção, cujos trabalhos deviam começar com a primavera. Reanimou-se então a Beira. Foram ocupados novos terrenos estendendo-se a ocupação pela praia fora perto da Ponta Gêa, e os que eram situados nas proximidades dos lugares de desembarque tornaram-se objecto duma especulação desenfreada. Chegou-se a pagar centenas de libras pelo simples título de posse provisória de meia dúzia de metros quadrados de areia!
Improvisaram-se mais casas, inauguraram-se mais estabelecimentos mercantis, abriram-se cafés e restaurantes, passaram pelas alfândegas montanhas de latas de conservas e de garrafas de bebidas alcoólicas, estrearam-se algumas pequenas indústrias das mais indispensáveis nos centros de população. Em volta da chusma dos pequenos comerciantes a retalho apareceram agências de algumas casas mercantis importantes do Natal, do Cabo e da província de Moçambique. A povoação alargou-se a olhos vistos; o chão que numa semana ainda estava vestido de mato, aparecia na semana seguinte limpo, fechado com estacas e fios de arame, e coberto de materiais de construção dentre os quais surgiam esqueletos de casas, depois de revestido com uma presteza de cena de mágica. Quando fui visitar a minha palhota que deixara a mais de quilómetro de distância do povoado, percorri intermináveis arruamentos, demarcados por edificações ou vedações, e fui encontrá-la humilhada atabafada por vizinhos, que orgulhosos do seu zinco e tabuado , protestavam já contra o contacto de tão inflamável monumento da Beira. E, efectivamente a pobre choça abrasou-se numa bela noite estrelada, ficando dela apenas uma fotografia e as minhas recordações gratas!
Não estando a terra preparada para receber tantos hóspedes, apesar de muitos deles levarem consigo os meios de proverem às suas necessidades, a vida tornou-se cara e difícil.
Pagavam-se aos carpinteiros para armarem casas salário de 3:600 a 4:500 réis; as casas construídas valiam rendas de 10 e 12 libras mensais, e faltavam alojamentos. A base da alimentação eram as conservas também encarecidas.
Quando um agenciador empreendeu, um dia por outro fornecer carne fresca de bois vindos de Sofala ou de Madagáscar, vendia pelangas e ossos esburgados a 500 réis o quilograma. Escanzeladas galinhas, que mais pareciam frangos crónicos, valiam uma e duas rupias, e de quando em quando apareciam monhés vindos de longes terras para oferecerem ovos a 50 réis cada um. A modesta batata, pão dos pobres europeus, fora promovida a acepipe de milionários, pois custava 500 réis o quilo, sujeita à quebra da podridão. O mesmo e maior preço se pagava por uma garrafa de zurrapa nacional. Não faltavam artigos de vestuário, mas para os adquirir era preciso deixar a pele na loja. Parecia que a competição entre os comerciantes era do qual venderia mais caro. Escasseando pessoal, indígena ou europeu para trabalhos e serviços inferiores, também por eles se pagavam quantias exorbitantes.
Estava calculado que a despesa de simples descarga das mercadorias era superior ao encargo dos direitos de importação. Além de ser tudo caro faltava muita coisa necessária. Faltava principalmente água. A que se podia recolher em caves abertas na praia, não era potável. Iam barcaças buscá-la ao Búzi, muitas milhas a montante da foz, mas levavam na viagem uns poucos de dias, às vezes só traziam lodo, e traziam-no pelo preço de vinho de Champagne. Recorreu-se à chuva guardando-a em depósitos, e um estrangeiro previdente montou uma fábrica de tanques de zinco; mas este mesmo recurso era precário, até porque as habitações não tinham capacidade para meterem em si provisões de água para um ano inteiro. Portanto a Beira não se lavava, pois que no mar havia tubarões e jamantas e o Pungué era um lameiro, e a Beira padecia sede que mitigava quantidades fabulosas de beberagens engarrafadas.
A terra nada lhe fornecia a não ser alguma caça, que os gastrónomos arrancavam da boca um dos outros. Nem um fruto, nem uma folha de hortaliça! Naquela sociedade em organização as necessidades anteciparam muito os meios de se satisfazerem, e todas as satisfações tiveram de ser importadas. Os indígenas ao menos nos primeiros tempos conservaram-se de parte, desconfiados, amedrontados, não pensando em tirar proveito dos hóspedes que se lhes impunham, nem lhes dando proveito a eles. A nova povoação teve, pois, de se criar e de viver apenas com o que se podia transportar em navios; tivera um nascimento e levava uma existência artificial, de acampamento num deserto. Economicamente a situação não se modificara. Apenas havia mais quem vendesse. Tinham crescido os capitais empregados na grande feira, mas a maior parcela desses capitais permanecia imobilizada nos armazéns, senão perdida nas instalações, e a menor girava apenas dentro dessa própria feira, passando das gavetas duns para a de outros feirantes, e voltando das gavetas destes para as daqueles. O consumo do pessoal oficial era limitado pelos seus vencimentos, taxados ainda em harmonia com um regime saudoso e lendário em que se comprava um boi por dois fios de missanga, e a pouca gente que passava para o interior quase toda trazia do Sul farnel para gasto ou pacotilha para revenda. As bebidas alcoólicas continuavam a ser o único artigo que tinha movimento.
Nestas circunstâncias os credores dos comerciantes da Beira – e a grande maioria deles, viviam só do crédito, - só deviam receber por conta dos dinheiros adiantados e das mercadorias fiadas, remessas pontualíssimas de esperanças, mas essa mesma moeda ia estando depreciada, porque o caminho de ferro que lhe determinava o valor, não principiava nunca apesar de se anunciar para cada paquete a chegada do pessoal técnico e material para a construção. Sempre que uma nuvemzinha de fumo à tona de água anunciava um vapor demandando a barra, a praia enchia-se de hospedeiros sem hóspedes, de negociantes sem negócio, que perguntavam ansiosos: Será agora? E não era nunca. Mas não havia demora, nem decepção, nem prejuízo, nem sacrifício, que afugentasse e descoroasse a Esperança a boa fada que, sozinha, presidiu à nascença da Beira e lhe ditou os destinos! Não chegava nunca a linha férrea; numa bela manhã de Julho chegara a bordo dum vapor inglês a Companhia de Moçambique, a nova, que representada pelo seu governador, ia tomar posse dos territórios dos antigos distritos de Sofala e Manica até o Save. Inaugurava-se uma nova era para esses territórios e para a Beira sua capital.
Até aí e a contar da data dos seus desastres em Mutassa e Macequece, essa companhia, fénix renascida de cinzas inglórias, não dera sinal de vida activa no meio dos empreendimentos e aventuras que no litoral e no interior prometiam, cumprindo pouco, revolver até às ínfimas camadas a terra que lhe fora destinada para domínio; reservara-se primeiro de braços cruzados, por fim nem braços tinha já. No meado de 1893 ainda vendia géneros de mercearia ao balcão em Neves Ferreira e na margem do Chiveve, e quem passava pelo arruamento principal da Beira, entrevia pela porta aberta duma modesta casa de mataca situada perto do comando militar, um engenheiro francês pago por ela, com o vermelho nariz pendente sobre o papel-tela em que desenhava planos da linha férrea, estudados a bússola e pedómetro.
Também nesse tempo constava que ela tinha em África um administrador pomposo que de quando em quando se movia através do sertão no meio duma caravana pitoresca, sultanesca. Ultimamente, porém, estes mesmos funcionários, o famigerado Madeira, as tendas, tudo desaparecera ou fechara as portas e a única coisa da Companhia que ainda bulia era uma grande bandeira com um C e um M estampados nas cores nacionais, que aos domingos e dias de festa ondulava, se havia aragem, num tope dum alteroso mastro aprumado na margem direita do Chiveve. Os que na outra margem trabalhavam e lutavam mal sabiam que bandeira era aquela que parecia estar amarrada a uma corda.
Deste retraimento, deste abandono de facto das antigas concessões, saiu abruptamente a Companhia para tomar posse das concessões novas, gritando às iniciativas que realmente haviam criado a Beira, que se arredassem porque tudo aquilo era dela. E o próprio Estado se arredou, até da parte do domínio e do campo de acção que para si reservara expressamente.
Foi uma arrojada aventura este apossamento. A Companhia que era obrigada pela sua lei constitucional originária a dotar-se com um capital de 4:500 contos de réis, firmemente subscrito e realizável, afoutou-se a assumir os encargos e responsabilidades de administração e exploração, da defesa e polícia, de granjeio material e da cultura material dum território em que caberiam à larga alguns Estados da Europa, dispondo unicamente da quantia de 12 mil libras, jogada por um pequeno grupo de accionistas da Companhia antiga, engodados na desforra das despesas já sofridas. Fora dessa quantia só contava com a esperança, a mesma moeda com que a maioria dos comerciantes da Beira saldavam anualmente as contas de ganhos e perdas! Esses 54 contos de réis chegaram-lhe para pouco mais do que contratar um núcleo de pessoal administrativo e pagar-lhes as passagens, e é de crer que esse pessoal levasse instruções para viver do país como um exército invasor, que tivesse queimado atrás de si os navios.
Governador, empregados superiores, chefes e praças dum futuro corpo policial, nada levavam consigo para instalarem os complexos serviços criados já no papel, e nada encontraram para os receber. Desembarcados na Beira, foram bater à porta do governador, e iam-no endoidecendo com pedidos e requisições. Venham casas para as repartições sr. Alpoim! Camas que esta gente não há-de dormir na areia! São precisas espingardas para os soldados! Papel para os amanuenses, que não têm em que escrever! Faz favor de nos arranjar candeeiros para os aquartelamentos? Há por lá uma corneta, visto que o corneteiro não sabe dar os sinais metendo as mãos na boca? Ceda-nos embarcações, arranje-nos loiças, roupas e medicamentos, agulhas e alfinetes! Pois não, dizia-lhes o Alpoim, mas pagassem o que levavam! Não temos dinheiro; respondiam. Obriguem-se ao menos, a embolsarem o Estado do valor dos objectos que dele receberem! Propunha o pobre homem empenhado na defesa das receitas e do material que tão laboriosamente criara ou reunira, para sustentação e gozo da futura intendência da Beira. Não estamos autorizados a tomar compromissos em nome da Companhia! Volviam-lhe. Esteve a ponto de se azedar a contenda, porque as ordens e instruções de Lisboa eram pouco claras, mas afinal os novos dominadores obtiveram, sem desembolso, os mais indispensáveis recursos para a instalação do seu domínio, tendo tomado posse das alfândegas, e usurpado ao município o direito de cobrar taxas de licenças para o exercício do comércio e indústria.
[In: Serões, Lisboa, vol. IV, 1904, p. 141 a 146]

Texto enviado pelo Dr. António Sopa

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