As instalações adquiridas por um processo que hoje à distância considero de compulsório e fruto de um sentimento de medo generalizado, que evitou que os seus legítimos proprietários, os sócios das três agremiações que constituíam o “Auditório Galeria e Arte”, lutassem pelos seus direitos e os seus sonhos. Ocupado e de “mão beijada”, satisfaziam pelos vistos as necessidades culturais da Direcção Provincial de Cultura que ao tempo, gatinhava ainda na busca das raízes de uma moçambicanidade cultural, mas caminhava a passos largos na destruição de outras culturas que se recusavam em assumir como património conquistado mas que, no mínimo, deveriam ter sido respeitadas porque afinal, três décadas depois, viriam a assumi-las com exageros de interpretação e de tolerâncias subordinadas!...
De uma coisa estou seguro. O processo não foi regular, não foi justo, nem obedeceu a critérios de legalidade. As nacionalizações, tanto quanto sei, referiam-se a prédios de rendimento e a outros, que não o sendo, se encontrassem abandonados por ausência dos seus donos, que preferiram abandonar o país definitivamente. O “Auditório” não era um prédio de rendimento nem se poderia considerar de abandonado. De entre os mais de l.000 associados que o constituíam e ajudaram a construir, muitos eram ainda os que viviam na Beira e que desde sempre se consideraram como moçambicanos, por opção ou nascimento. Uma reunião com eles, convocada pelos responsáveis provinciais da cultura, era o mínimo que se poderia esperar, para legalizar a situação e dar ao “Auditório” o encaminhamento que fosse decidido, para bem da cultura e da revolução.
Se estou errado na análise que faço sobre o assunto, que me corrijam os expertos da política e das leis deste país que é também o meu, para que dê a mão à palmatória se for caso disso.
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Na realidade, pondo de parte os acabamentos, o edifício estava completo e funcional, com salas e oficinas para pintura, desenho e escultura, salões espelhados para o ensino e prática de “ballet” e outras danças, diversos departamentos para reuniões e secretarias destinadas a cada uma das agremiações que faziam parte do complexo, além de um café-bar comum e finalmente, uma sala de espectáculos com cerca de 600 lugares, um palco que na época, foi considerado um dos maiores do País, e uma cabina apetrechada com projectores de 16 mm e de super 8, bem como os respectivos sistemas sonoros.
Todas as salas estavam apetrechadas com o equipamento indispensável para o seu funcionamento e o palco, de uma tela gigante de transparência e de um “órgão” de luzes com cerca de uma quinzena de projectores, desde os “babys” aos pesados “canhões” e às “panelas”, como dádiva, a nosso pedido, da fundação “Calouste Gulbenkian”.
As pesadas cortinas que fechavam a “boca de Cena” foram confeccionadas pela Laura que a elas dedicou muitas horas de trabalho à frente da sua máquina de costura, tal como muitos outros associados o haviam feito noutros misteres.
A larga escadaria dava acesso a um átrio amplo e totalmente coberto onde, à direita, se encontravam as salas de trabalho do Cine-Clube, seguindo-se-lhes o café esplanada, voltado para um pequeno jardim interior a céu aberto. Um pequeno lago artificial repleto de peixes de água doce, que evoluíam em redor de uma estátua esculpida em pedra, ou melhor, em material que a sugeria, feita pelo Jorge Vasconcelos, e que representava, na figura de uma jovem semi-nua, a tranquilidade, a arte e a inocência, complementava o pequeno e agradável espaço verde, sobranceiro à esplanada do café-bar. Para além deste espaço, encostado às margens do Chiveve ficava o bloco que comportava as salas de “Ballet”, da música, da pintura e da escultura.
Na fachada principal, a parede que nos ficava à direita da escadaria que dava acesso ao átrio, estava totalmente preenchida por uma bela e elucidativa pintura da autoria de Malangatana, executada nos princípios dos anos 70, aquando de uma das suas visitas que fez à cidade, tendo ficado hospedado em casa da Maria Helena e do Álvaro Simões.
Durante muitos anos, era na casa a que me refiro acima, nas Palmeiras, antes da Maria Helena enviuvar do Joaquim José Elias, que um grupo de amigos se reunia para conversar e ouvir boa música. Recordo-me dos irmãos João e José Afonso, do Álvaro Simões, do arquitecto Ramalhete, do Noronha Marques, do Rafael Nunes de Carvalho e mais recentemente dos jornalistas José Catorze e Peixe Dias, entre muitos outros.
Com a obra de arte a que me referi - o mural pintado na parede do “Auditório” -, surgiram logo a seguir ao seu término alguns problemas com as autoridades locais que, incomodadas com o que pudessem querer dizer as suas figuras, num momento crucial de luta armada pela libertação do povo e a independência do território, de confusão política e social, nos pressionaram para que a eliminássemos com umas borradelas de tinta neutra. A justificação era a de que, ela representava a resistência do povo através dos tempos, e presumia, nas “entrelinhas” das figuras amarguradas, por onde espreitavam armas e decisões, a sua próxima libertação. Mas o que mais os perturbava parecia ser o tamanho do mural, além da sua simbologia, porque era ampliada para se ver à distância, tomando proporções intoleráveis de uma ostensiva provocação.
Por sinal, a leitura que fizeram da obra era correcta porque os simbolismos utilizados eram por demais evidentes e o seu autor ao criá-la, demonstrara coragem assim como nós, que recusámos em fazer-lhes a vontade, não cedendo às suas pressões e curiosa e estranhamente tímidas ameaças. Talvez porque o momento conturbado por indefinições e incertezas porque passávamos, devido ao recrudescimento da luta armada pela libertação do país, não fosse propício a tomar decisões, normalmente mais prepotentes e drásticas e ficaram-se por aí. A obra lá continua, esbatida pelo tempo, pelas intempéries, pela humidade salubre do “Chiveve”, mas sobretudo por ausência de restauro e abandono total.
Curiosamente, à coragem que precisámos ter na altura, para não nos subordinarmos às pressões das autoridades coloniais, contrapôs-se mais tarde uma apatia generalizada e até a empatia do contrário, por acção do fenómeno do “deixa andar” que se apegou como tinha na sociedade moçambicana do pós independência, pseudo-revolucionária nos primeiros tempos e depois acomodatícia à “democracia” global que lhe foi imposta, como lapa mediterrânica em rocha dura.
Os anos vão passando e pelo andar da carruagem que é muito lenta, não aproveita ninguém para saltar no apeadeiro das decisões e desembaraços, interessado em convidar o autor do mural, o velho mestre Malangatana, para dedicar um pouco do seu tempo a restaurá-lo. Não pode nem deve esta obra de arte, se ainda existe, ser considerada como herança do colonialismo, como muita coisa foi rotulada para justificar abandono e vandalismos de toda a espécie. Os responsáveis neste País pela Cultura, deviam ter mais país e mais cultura dentro deles, para que pudessem respeitar uma e outro.
Compete ao Ministério de tutela que “herdou” o complexo do “Auditório Galeria e Arte”, assumir a responsabilidade da sua conservação e restauro, incluindo o mural que faz parte do mesmo património. Mas também competia ao autor tomar iniciativas próprias para restaurar e conservar a sua obra e não a abandonar como produto menor da sua arte, porque nunca o considerámos como tal, antes pelo contrário. A sua arte e o seu labor, surgiu como fruto maduro de um embondeiro que nos deu sombra e nos ajudou a tomar consciência do que acontecia no país. O abandono da obra, como sucede com muitos que nada reconhecem nem se reconhecem a si próprios, é como que abandonar um filho indesejado e pouco querido, por ter nascido fora de tempo e com sequelas de distúrbios emocionais que o indiciam como fruto indeiscente. Perspectiva terrível que, de tão inglória e inoportuna, me recuso em aceitar como a adoptada pelo meu velho amigo Malangatana Valente!...
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