30/05/07

Cine-Clube e Auditório (1)

O realizador cinematográfico José Cardoso, nasceu a 6 de Abril de 1930 e viveu na cidade da Beira de 1946 a 1976. Foi fundador do Cine-Clube da Beira. Em 1976 rumou para Maputo para o Instituto Nacional de Cinema. Realizou o primeiro filme de grande metragem integralmente moçambicano "O Vento sopra do Norte". Criou a empresa "Publicita".


excertos dos "Memorandos da Vida - Volume III" de José Cardoso

No “Grupo de Amadores de Cinema da Beira” a que já me referi, tomávamos consciência de que, afinal, a diferença entre o sonho e a realidade, não era tão curta como julgávamos a princípio, embalados pela impetuosidade cega da juventude, tão confiante quanto imprudente e ingénua. Assim, o projecto impossível que tínhamos inicialmente, de querermos transformar a capital de Manica e Sofala numa “Califórnia” africana nas margens do Chiveve, deu lugar a outro mais realista e de maior impacto para grande parte dos citadinos e em especial para um núcleo de amigos mais sensatos e experientes, que conservavam os pés bem assentes na terra e a cabeça liberta de quimeras absurdas.

Juntámos as nossas ideias e energias a outras, igualmente motivadas mas mais judiciosas e objectivas, e lançámo-nos na criação de uma organização afim, mais viável e abrangente, que seria um “Cine-Clube”, devidamente filiado – porque lhe dava um estatuto de maior seriedade - na Federação Portuguesa dos Cine-Clubes.

Reconhecemos a importância deste projecto, que poderia aglutinar um maior número de pessoas, receber apoios e o reconhecimento da “Federação Portuguesa”, que estava por sua vez filiada na “Federação Internacional dos Cine-Clubes”, criada em Setembro de 1947, durante a realização do Festival de Cannes, no decorrer de um “Congresso Internacional” em que estavam representados 13 países, entre os quais Portugal.

Em 1958, nascia então o “Cine-Clube da Beira”, que em poucos anos viria a ser o segundo maior de todo o território português de aquém e de além-mar, logo a seguir ao “Cine-Clube do Porto”, quer em número de associados, quer em quantidade, qualidade e importância das suas sessões cinematográficas e de outras realizações congéneres.


Em resumo e de acordo com a definição da Federação Internacional dos Cine-Clubes "É considerado um Cine-Clube toda a associação com fins não lucrativos, tendo por objectivo principal a projecção de filmes em sessões privadas. O das trocas culturais cinematográficas entre os povos e para o encorajamento do filme experimental. Os Cine-Clubes e Federações não podem, em caso nenhum, ter fins lucrativos ou comerciais.” Em conformidade com esta definição, a produção de filmes passou a ser da responsabilidade do Cine-Clube da Beira, a coberto da sua "Secção de Cinema Amador" que passou a publicar um “Boletim” informativo, terminando assim a vida efémera do “Grupo de Amadores de Cinema da Beira”.

É importante registar para conhecimento dos que não tiveram o privilégio de partilhar connosco estes admiráveis tempos, que foram tão importantes para a cidade, para o nosso crescimento e as nossas vidas, os nomes de alguns dos companheiros que tornaram possível a criação do “Auditório e Galeria de Arte” e em particular o “Cine-Clube da Beira”, que foi o grande dinamizador, o “sangue e a alma” que lhe deu vida e um estatuto ímpar no panorama cultural da cidade.

Dos que me lembro - porque da maioria deles fui amigo e camarada, com quem, naturalmente, me relacionei com maior frequência e intensidade -, aqui deixo registados os seus nomes porque o merecem, com o prazer que nos dá o sentimento de um dever cumprido e para que as novas gerações “Chivevianas” se lembrem dos seus nomes, como exemplos de dedicação e luta em prol da sua cidade que tanto amavam mesmo na condição de colonos e que, na sua óptica de apaixonados, era a melhor de todas. Na “Galeria de Honra” que proponho de forma aleatória, constam os nomes de: Joaquim José Elias, João Afonso dos Santos, Hernâni Rodrigues, Álvaro Simões, Nunes Cordeiro, Noronha Marques, Fernando Couto, Carlos Ferreira, António José Gomes Martins, Artur Crespo, Rafael Nunes de Carvalho, Francisco Maia, Marco António, Celestino Senes, António Sopa, Almeida Valgode, Figueiredo Jorge, Artur Costa, e as respectivas esposas dos que eram casados evidentemente, e alguns outros de que não me ocorrem os nomes, além de mim próprio que fui sócio fundador nº 6 do “Cine Clube”, e de todo o grupo que me acompanhou no primeiro projecto de cinema, o “Grupo de Amadores de Cinema da Beira” a que me refiro antes, como o Luís Aboim e o Gil Delgado.

Durante alguns anos, a sede esteve instalada no primeiro andar do prédio da “Associação Comercial”, um dos que ladeavam a Praça do Município e era aí, num dos seus salões, que se realizavam as sessões para as crianças, com filmes indicados para as suas idades e palestras esclarecedoras sobre os temas, em obediência às preocupações educativas porque se devem gerir os Cine-Clubes. As sessões para os sócios seniores, numa dada altura, passaram a ser nos cinemas “Olympia” e “Palácio” que alugávamos, porque o número de sócios era já significativo, (aproximava-se do milhar), com tendências para, num breve trecho, ultrapassar essa marca.

Assim, o “Cine-Clube da Beira”, na área da educação cinematográfica, exibição de filmes de qualidade e da produção cinematográfica amadora; o “Grupo Dramático Actor Eduardo Brasão” e o TAB, “Teatro de Amadores da Beira”, no desenvolvimento e divulgação das artes cénicas e ainda o “Centro de Cultura e Arte”, no âmbito da música, da dança e das artes plásticas, em reuniões conjuntas que se prolongaram por algum tempo, para limar arestas e encontrar consensos, decidiram - com o apoio da população mobilizada para o efeito e a aderência de alguns grupos económicos que se prontificaram em apoiar a iniciativa -, construir o "Auditório e Galeria de Arte", de características polivalentes, que pudesse acolher o conjunto daquelas agremiações e dar-lhes capacidade material e espacial para a efectivação regular de todas as suas actividades em condições ideais.

Em conjunto se estudaram as necessidades presentes e futuras em termos espaciais, para satisfazer as exigências culturais a que todas elas se propunham. De posse desses dados, o arquitecto Ramalhete ou Garizo do Carmo (não posso precisar qual deles foi), ambos amigos e associados a todas as iniciativas que respirassem preocupações culturais, ofereceu-se para fazer o projecto gratuitamente.

Há uma ideia actual e generalizada de que o “Auditório” teria sido construído com o apoio financeiro da “Gulbenkian”. Nada mais falso e injusto. O Álvaro Simões a quem pedi recentemente que confirmasse ou desmentisse as recordações que tinha sobre o assunto, de que tal obra se deveu exclusivamente à dedicação e ao trabalho de uma boa parte da população da Beira, respondeu-me sucintamente: “o apoio que tivemos da “Gulbenkian” foi em equipamento, nomeadamente um Órgão de luzes, alguns projectores de iluminação, um Ciclorama e uma boa colecção de filmes do “Charlot” e livros especializados sobre cinema.

O “Auditório” foi construído com o esforço conjunto de todos nós (os “tesos”), que conhecíamos alguns que tinham “algum” e contribuíram com dinheiro e trabalho e com materiais de construção doados por algumas empresas.”

Portanto, depois de colocados os pontos nos ii, entreguemos definitivamente o “seu a seu dono”.

Ainda houve tempo para provar que a obra era funcional para as diferentes actividades instaladas, embora nunca tivesse sido concluída até hoje, passados 44 anos, nalgumas áreas de lazer que se ficaram pelos pilares e em pormenores de acabamento. Da nossa parte, por falta de mais apoios e financiamentos, que foram sendo reduzidos à medida da exagerada lentidão com que decorriam as obras e da sua imprevisível conclusão, que levaram gradualmente ao cansaço e à desmobilização dos doadores e por comodismo, da parte dos que se seguiram a nós, após a independência do País em 1975, por ter sido incluído no lote dos imóveis nacionalizados por presumível abandono dos proprietários.


Dele se assenhoreou o governo para aí instalar a “Casa da Cultura”, desinteressando-se o ministério de tutela em concluir a obra. Teriam achado penso eu, que o “Auditório”, tal como o tínhamos deixado e eles tomado de assalto, era suficientemente funcional e que não valeria a pena gastar tempo nem dinheiro - aquele porque implicava dedicação e trabalho e este porque era escasso para as necessidades de um país que renascia das cinzas de um passado colonial -, com pormenores de somenos importância e perfeitamente dispensáveis na sua lógica acomodatícia. A política do deixa andar, infelizmente, tinha-se manifestado muito cedo, na madrugada de uma revolução que ainda dormia a sono solto, sonhando em demasia!...


texto gentilmente cedido pelo autor


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