28/05/07

A BEIRA em 1891 e 1892: vista por António Enes (1)

António José Enes (Lisboa, 15 de Agosto de 1848 – Queluz, 6 de Agosto de 1901).
Jornalista, dramaturgo e estadista, ocupou o ministério da Marinha e Ultramar, após o Ultimatum inglês, tendo sido comissário régio em Moçambique (1891 e 1894). Enquanto ministro do Ultramar facilitou o trânsito de mercadorias estrangeiras pelo porto da Beira, dando, de algum modo, a feição de curso de navegação internacional ao rio Zambeze, tendo assinado igualmente a primeira carta de concessão à Companhia de Moçambique.


EXTRACTOS DO RELATÓRIO
A Beira – por exemplo – esse anunciado cais de um vasto empório comercial e mineiro, essa disputada porta do centro de África, que eu tanto receara ver arrombada por Cecil Rhodes: ainda hoje não voltei a mim dos desalentos que me inspirou a primeira visita que lhe fiz!
Estávamos em Agosto, mas, naquela região de humidades, em que a terra parece apenas uma crosta à flora da água suj
a, o mar, o céu e a chuva era tudo cinzento. Já tínhamos passado bóias; pela popa fora do «Euxéne» alastrava-se em manchas barrentas o lodo do fundo levantado pela quilha, e nada se avistava, a não ser, por uma e outra amura, duas delgadas barras de um verde sujo com laivos amarelados.
Custou-me a crer que a Beira fosse aquilo, areia e mangal debruando um enorme lameiro líquido, em que o Pungue e o Búzi vão dissolver as próprias margens, laceradas por correntes que fazem perder pé aos hipopótamos.
Lugar onde se pudesse viver naquele país, não se sabe se em formação se em decomposição, e cuja topografia é modificada pelas águas soberanas a cada maré, só havia e só há uma estreito areal, lambido de um lado pelo Chiveve e do outro pelo Oceano, e por cima do qual podem saltar vagas de tempestade.
Tive desejo de saber por onde poderia a civilização avançar dali à conquista da Machona e de Matebelelândia. Dei alguns passos no caminho terrestre, e logo 8 quilómetros, no Dondo, passei pântanos em que os machileiros se cravavam até às coxas; jornadeei de Neves Ferreira a Mapanda, e só vi planuras deprimidas em que o alto capim disfarçava mal as rugas feitas no chão amolecido pelos refluxos das inundações. Subi o Pungue, a encalhar onde as cartas marcavam o fundão, porque o haviam entulhado de areias movediças do leito; deixei lá um ferro de escaler enleado em faxinas; observei os bancos, onde já tinha perdido um vapor da Companhia de Moçambique, o «Búfalo» estivera cravado durante semanas e o «Agnes» havia de naufragar, e durante duas horas tentei debalde, a toda a pressão, navegar contra a maré da enchente. Fui ao Búzi, profundo e estreito, a bater com as pás das ondas do «Búfalo» no raízame do mangue, e à saída espetei-me numa coroa de areia, onde pela noite velha me ia surpreendendo um vendaval repentino. Encontrei, pois, as vias fluviais, torcidas e retorcidas, atravancadas por bancos e dificultadas por violentas correntes; os caminhos de terra, interceptados por pântanos sem chão firme e charnecas sem água potável, ainda antes de serem infestadas por tsé-tsé; o único lugar possível para assento de uma povoação, exíguo e ameaçado de ser submergido por uma marezada de equinócio. Compreendi então porque iam os nossos antepassados a Manica pela Zambézia e haviam deixado em esquecimento o Pungue, posto agora em moda, e afigurou-se-me que o mundo sublunar ainda não é tão pequeno nem a humanidade se acotovela tanto nos seus continentes, que valesse a pena fertilizar a poder de dinheiro regiões assim desajustadas da natureza. [...]
Veja-se o que sucedeu e está sucedendo na Beira, nesse tristíssimo país, que incutiu a compatriotas nossos, que lá estacionaram, a opinião de que a África só serve... para pretos e oficiais de marinha. Estrangeiros prudentes, que a visitaram quando o seu porto principiou a ser frequentado, esmoreceram também com aquele cenário de lodos e areias. Mas o capital, que entre nós simboliza a timidez, é que não esmoreceu nem se assustou! Bastou correr fama de que em Manica havia ouro e anunciar-se que para o transportar se construiria uma linha férrea, para logo aparecerem libras, às dezenas de milhar, abrindo lojas, estabelecendo carreiras de navegação a vapor, montando serviços de transportes terrestres, ensaiando indústrias, vendendo aguardente, tentando explorar por mil formas, não tanto o ouro, como os próprios exploradores futuros do ouro.
E que fantasias e audácias as dessas libras açodadas! Não havia ainda caminhos para o interior, e já estavam em Mapanda belos mail-coachs, envernizados como coupés de noivado, arvorando em letras de ouro: The river Pungue to Manica. Sabia-se que a tsé-tsé infestava o país, mas logo surgiram ingleses e boers com manadas de bois de tracção. Os bancos do Pungué cresciam e medravam debaixo da quilha das embarcações; não obstante, o «Agnes» e o «Carnavon» lá se iam arrastando por cima deles, pára aqui, sonda acolá, desafiando passageiros. Também em Mapanda, no meio de pântanos, dois fura-vidas armaram um hotel confortável, com luzidias camas de metal vestidas de mosquiteiros diáfanos, onde se comiam bifes de búfalo e lombo de zebra assado com peripiri. Para as bandas de Massikeses e de Mutare improvisaram-se chalets à espera dos moradores, empilharam-se latarias à espera dos beberrões, - e só esses é que esperaram pouco.
Na Beira compravam-se palmos quadrados de areia como se tivesse misturado ouro em pó; a povoação ia estendendo as suas linhas de casas multicolores de madeira e zinco pela praia fora, a demandarem a Ponta Gea; as vagonetas Decauville do corpo expedicionário rodavam de hora a hora, distribuindo pelas quitandas caixas, fardos e barris, em que as mais variadas mercadorias, avolumando nelas todas as bebidas conhecidas, iam também esperar pelo futuro incerto. Todas aquelas instalações custavam rios de dinheiro. Pagavam-se 10 a 12 libras por mês para viver assado a calor lento entre chapas de zinco. Um carpinteiro ganhava 4$500 réis por dia, armando esqueletos de barracas. E faziam-se todas as despesas, suportavam-se todos os sacrifícios, corriam-se todos os riscos, empatavam-se contos e contos de réis, passavam-se inclemências, devoravam-se febres, morria-se nos matos ao desamparo, só para esperar, porque aquele movimento criador era de oferta e faltava a procura. Os lojistas negociavam uns com os outros, e os hospedeiros hospedavam-se a si. Tudo se empreendera para explorar o ouro e o caminho de ferro; entretanto, ninguém sabia se o ouro era uma realidade e o caminho de ferro não seria um logro. Há não há, faz-se não se faz, eram os temas perpétuos das discussões dos especuladores, grupados às portas dos estabelecimentos vazios. Alguns vinham-me perguntar ao ouvido a minha opinião sobre esses problemas vitais, pedindo-me que a não dissesse aos vizinhos. Se corria voz de aparecera um filão ou ia chegar um engenheiro, estoirava o champagne por todo o arraial e coros de bêbados soltavam hurrahs!
A Beira devia antes chamar-se Esperança!
Não havia contratempo que fizesse desmaiar essa esperança, nem desastre que aterrasse os capitais.
Os luzidios mail-coachs foram comidos pelo muchem em perfeito estado de virgindade. Os tristes bois, mordidos pela mosca, assaltados por leões, mortos de sede, espalharam pelos caminhos do interior as lastimosas carcaças, descarnadas pelos abutres e pelos landins, gulosos de podridões. O hotel de Mepanda confirmou o juízo do seu cozinheiro, que tantas vezes me repetira: Sale affaire, monsieur, sale affaire! Fechou, porque só quizumbas se hospedariam nos seus quartos catitas. O «Agnes» encravou-se na areia do Pungué, e os crocodilos vão agora apanhar sol para cima da sua ponte. No interior, barracas houve que boiaram nas cheias; noutras, os barraqueiros tiveram de comer as conservas e de escorropichar os garrafões, e não se sabe se morreram de febres se de alcoolismo. Tardando o caminho de ferro e não aparecendo o ouro, houve um período de angústia. Já ninguém passava para Manica; voltava quem para lá fora. E como voltavam os míseros aventureiros? Depois de terem vendido aos pretos as espingardas, a ferramenta, o fato, por punhados de milho ou raízes de mandioca, metiam-se ao mato, a pé, pedindo esmola à natureza ou aos raros viajantes. Vi uma carta, em que uma senhora inglesa, que foi ao forte Salisbury, contava que os seus compatriotas desventurados iam esperar os Portugueses aos caminhos para serem socorridos por eles; e as nossas autoridades, os nossos médicos, os nossos oficiais, muitas vezes acudiram a pungentes misérias. À noite, quem passava pelas locandas da Beira ouvia concertos de pragas e blasfémias dos desiludidos, que votavam a todas as maldições quem os havia enganado com falazes esperanças de riqueza; os locandeiros, porém, iam encomendando mais aguardente, para atordoar o desespero de outras e outras vítimas obstinadas dessas mesmas esperanças.
Nem nesse período, porém, nem com todos esses revezes, se retraíram esses capitais e as iniciativas. O ouro teima em não aparecer; mas lá vai o caminho de ferro em procura dele. Quando surgiu no porto um navio inglês carregado de material velho, foi um delírio na Beira! Escolheram-se para ponto de partida da construção uma planície à margem do Pungué, onde as chuvas e as cheias depositam espessas camadas de água! Pois esse chão alagadiço, a que se deu o nome híbrido de Fontesvila, foi aforado por exorbitantes preços, sendo tal a afluência de pretendentes que a Companhia de Moçambique teve de fazer guardar pela polícia os seus escritórios assaltados. A casaria da Beira alastra-se dia a dia pelo areal fora. Não há nada certo, sólido, firme, nem o chão que se pisa; todos sabem que sobre o país paira uma dúvida de vida ou morte, de fortuna ou de ruína, um formidável to be or not to be, haver ou não haver ouro explorável. Todavia, sobre a areia movediça e com um ponto de interrogação no futuro, arquitectaram-se já inúmeras empresas com cotações nas bolsas, e os capitais andam a oferecer-se à companhia gerente daquela terra de aventuras e visualidades, senão para se associarem com ela, para fazerem aterros, construírem docas e cais, empreenderem plantações, tentarem todas as explorações que se possam recomendar à credulidade do accionista!
Bem sei que só a cobiça do ouro causa estes delírios de esperança e de confiança, e por isso se lhe chama febre; e que não podemos convencer o mundo de que já morou uma rainha do Sabá em cada canto da província. Mas sem memórias do tempo de Salomão e sem reclames de Cecil Rhodes, também Lourenço Marques em poucos anos atraiu avultados capitais e multiplicadas iniciativas, que não têm vivido só das prodigalidades da Metrópole, e muitas regiões, das mais notórias de Moçambique, não têm sido desdenhadas pelos empreendedores. [...]
[Moçambique: relatório apresentado ao governo, António Enes. Lisboa, Agência Geral das Colónias-Divisão de Publicações e Biblioteca, 3ª ed., 1946, p. 13 a 14; 27 A 31]
Texto enviado pelo Dr. António Sopa

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