A Revista Índico das Linhas Aéreas de Moçambique no seu nº 39 de 2007 (Abril a Junho) dedica a sua capa ao centenário da cidade da Beira e apresenta textos de Adelino Timóteo, António Sopa e Mia Couto.
Desta revista reproduzo o texto de António Sopa intitulado “Espasmo de saudade”:
Vivi a minha infância e a adolescência numa pequena rua da Beira a que tinham dado o nome de um colonial ilustre – Freire de Andrade.
Com poucas centenas de metros, ligava a estreita faixa de terra habitável entre o Chiveve e o mar. Só viria a perceber melhor a sua geografia, muitos anos mais tarde, quando pude confrontar-me com as velhas imagens do passado. O meu território de brincadeiras ia desde a velha ponte de ferro, agora reduzida a um montão de ferros retorcidos e inúteis, até à chamada Praça do Município, onde praticamente se tinha localizado o posto militar de Aruângua, criado pela determinação do tenente Luís Inácio, e que está na origem da Beira. Eu tinha aprendido a tactear o mundo no local de nascimento da cidade. Onde anteriormente se tinha amontoado, de maneira informe, o casario de madeira e zinco, já pouca coisa estava. Apenas dois ou três edifícios, ainda imponentes na sua lenta decadência, sobreviveram até à minha saída da cidade.
Mas tive ainda o privilégio de ter conhecido o velho restaurante do Beira Terrace, mesmo junto da muralha, do lado da actual capitania.
Era um volumoso edifício de um único piso, elevado sobre colunas, com uma varanda a toda a volta. Lembro-me de um interior silencioso e escuro, onde abundavam as madeiras da terra. Viria a arder num trágico final de ano na década de 60 do século passado, mas pude ainda conviver com uma parte importante dos seus despojos, na casa dos seus proprietários, no antigo edifício do Hotel Savoy.
Era um volumoso edifício de um único piso, elevado sobre colunas, com uma varanda a toda a volta. Lembro-me de um interior silencioso e escuro, onde abundavam as madeiras da terra. Viria a arder num trágico final de ano na década de 60 do século passado, mas pude ainda conviver com uma parte importante dos seus despojos, na casa dos seus proprietários, no antigo edifício do Hotel Savoy.
Ainda de pé, em toda a sua singeleza (pouco mais do que um armazém de alvenaria, a que uma fachada pomposa procura dar alguma imponência), lá permanece o velho Almoxarifado. Poucos saberão que é uma das primeiras construções de alvenaria da cidade, juntamente com o edifício do Standard Bank. Existe agora a possibilidade de o restaurar, por iniciativa de uma associação cultural beirense.
Nas suas traseiras fica o Tribunal, um elegante edifício de dois pisos, rodeado de uma varanda com colunas, e cuja construção nos remete para a primeira década do século passado. Logo ao lado, em toda a sua fragilidade, a primitiva fábrica de gelo.
Do lado do mar, todo este espaço era delimitado pela muralha. Na minha meninice parecia-me uma sólida massa de cimento armado, o que não impediu alguns desmoronamentos (1). Ela avança pelo interior da cidade e é uma excelente referência para conhecer os limites da antiga povoação. Vale a pena seguir-lhe o percurso, já que se ganha uma visão completamente diferente da cidade e, mais tarde, era ali que ficava instalado o Luna-Parque. Aos domingos à tarde ficavam-se por lá as famílias a ouvir os relatos de futebol português, depois da inevitável “volta dos tristes”. Era também um espaço de histórias e mistérios. Havia também o “Velho China” que circulava por entre os grandes pedregulhos que a protegiam, à cata de ostras. Dizia-se então, em voz baixa, que a sua verdadeira actividade era o contrabando. E era a residência do primeiro poeta que conheci, a viver na carroçaria dos carros abandonados, nas traseiras do Pendray e Sousa. Chamava-se Mário Bingre. No seu passado há também uma estranha história que valerá a pena um dia contar.
Já a caminho da Praça do Município existem outros edifícios ligados com o passado da cidade. O Clube Inglês, mesmo encostado à muralha, era uma bela construção de dois pisos que se distinguia pela forma do telhado e pela varanda que a circundava totalmente. No rés-do-chão ficava localizado o gabinete do arquitecto Carlos Ivo, a quem a cidade deve alguns dos seus mais belos exemplares, um barbeiro e o “Bar do China”, praticamente o único local de convívio interracial do bairro. O primeiro andar alojava o clube e a casa do barman indo-português. O clube guardou durante muitos anos algumas relíquias históricas, como velhos jornais da cidade e as armas do conhecido pioneiro Alfred Lawley. Esteve em riscos de desaparecer, mas uma instituição bancaria (2) acabou por recuperá-lo, instalando ali a sua sede.
Nas suas traseiras fica o Tribunal, um elegante edifício de dois pisos, rodeado de uma varanda com colunas, e cuja construção nos remete para a primeira década do século passado. Logo ao lado, em toda a sua fragilidade, a primitiva fábrica de gelo.
Do lado do mar, todo este espaço era delimitado pela muralha. Na minha meninice parecia-me uma sólida massa de cimento armado, o que não impediu alguns desmoronamentos (1). Ela avança pelo interior da cidade e é uma excelente referência para conhecer os limites da antiga povoação. Vale a pena seguir-lhe o percurso, já que se ganha uma visão completamente diferente da cidade e, mais tarde, era ali que ficava instalado o Luna-Parque. Aos domingos à tarde ficavam-se por lá as famílias a ouvir os relatos de futebol português, depois da inevitável “volta dos tristes”. Era também um espaço de histórias e mistérios. Havia também o “Velho China” que circulava por entre os grandes pedregulhos que a protegiam, à cata de ostras. Dizia-se então, em voz baixa, que a sua verdadeira actividade era o contrabando. E era a residência do primeiro poeta que conheci, a viver na carroçaria dos carros abandonados, nas traseiras do Pendray e Sousa. Chamava-se Mário Bingre. No seu passado há também uma estranha história que valerá a pena um dia contar.
Já a caminho da Praça do Município existem outros edifícios ligados com o passado da cidade. O Clube Inglês, mesmo encostado à muralha, era uma bela construção de dois pisos que se distinguia pela forma do telhado e pela varanda que a circundava totalmente. No rés-do-chão ficava localizado o gabinete do arquitecto Carlos Ivo, a quem a cidade deve alguns dos seus mais belos exemplares, um barbeiro e o “Bar do China”, praticamente o único local de convívio interracial do bairro. O primeiro andar alojava o clube e a casa do barman indo-português. O clube guardou durante muitos anos algumas relíquias históricas, como velhos jornais da cidade e as armas do conhecido pioneiro Alfred Lawley. Esteve em riscos de desaparecer, mas uma instituição bancaria (2) acabou por recuperá-lo, instalando ali a sua sede.
Logo ao lado ficava o Hotel Savoy, já sem o esplendor que tivera no passado. Tinha perdido a bela teia de ferro fundido que o cercava, dando-lhe uma roupagem mais moderna, estando ali instalados escritórios e apartamentos. Acabou por arder o ano passado, após muitos anos de agonia.
Já no Largo Araújo de Lacerda, nome de um benemérito da cidade (3), ficava a Casa Portugal. É um edifício em tijolo vermelho, rodeado por largas varandas de ferro, pré-fabricadas, celebrizado no traço da pintora Dana Michaelis. Na década de 60 começaram a ser construídos os grandes prédios comerciais, iniciando um processo de transformação de todo aquele espaço.
Durante estes últimos trinta anos, tudo isto se manteve praticamente inalterado. Apenas o tempo e a mão do homem lhe têm causado estragos, alguns dos quais irreparáveis. Teimo em acompanhar esta silenciosa degradação, percorrendo toda esta geografia, ajuizando ainda das possibilidades de salvar, pelo menos, alguns desses edifícios, que narram a história da antiga povoação. Apesar da ignorância, do desinteresse e das dificuldades económicas em que esta mergulhada a cidade.
E regresso inevitavelmente ao mundo maravilhoso da infância, assaltado por inúmeras recordações.
Durante estes últimos trinta anos, tudo isto se manteve praticamente inalterado. Apenas o tempo e a mão do homem lhe têm causado estragos, alguns dos quais irreparáveis. Teimo em acompanhar esta silenciosa degradação, percorrendo toda esta geografia, ajuizando ainda das possibilidades de salvar, pelo menos, alguns desses edifícios, que narram a história da antiga povoação. Apesar da ignorância, do desinteresse e das dificuldades económicas em que esta mergulhada a cidade.
E regresso inevitavelmente ao mundo maravilhoso da infância, assaltado por inúmeras recordações.
Notas (por Ferreira Mendes):
(1) De notar que nessa zona do Beira Terrace (por detrás do actual Consulado de Portugal) a velha muralha já tinha ruído na década de 50, tendo sido substituída pela que até agora perdura. Nas marés baixas é ainda hoje possível verem-se restos da primitiva muralha.
(2) Banco Internacional de Moçambique (BIM)
(3) O Dr. José Araújo de Lacerda, que veio prestar serviço na Companhia de Moçambique em 1897 e faleceu em 1928, foi chefe dos Serviços de Saúde. Legou todos os seus avultados bens (avaliados em cerca de 100:000 libras, incluindo o edifício do actual Conselho Municipal) à cidade da Beira. A praça com o seu nome, onde se encontrava o seu busto, é a actual Praça do Metical.
(2) Banco Internacional de Moçambique (BIM)
(3) O Dr. José Araújo de Lacerda, que veio prestar serviço na Companhia de Moçambique em 1897 e faleceu em 1928, foi chefe dos Serviços de Saúde. Legou todos os seus avultados bens (avaliados em cerca de 100:000 libras, incluindo o edifício do actual Conselho Municipal) à cidade da Beira. A praça com o seu nome, onde se encontrava o seu busto, é a actual Praça do Metical.
2 comentários:
Pena nao ter conhecido a cidade na altura das fotos aqui apresentadas... Agora apenas aprecio as ruinas virarem ainda mais ruinas, ou cafes transformarem-se em bancos e tal e coisa...coisas da beira.
Bjs meus
É interessante ler isto -- e lembrar.
Saudações.
J H Coimbra
(Chitengo, 28 05 1940) > Lisboa, 22 05 2007
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