05/04/07

A Porta da Cidade

Vivi a minha infância e parte da adolescência na sua vizinhança. Estou a falar do edifício do Almoxarifado. Num espaço praticamente despovoado de outras construções, a sua fachada ganhava um relevo que, noutras circunstâncias, nunca teria. Só alguns anos depois vim a conhecer a antiga geografia do local. Foi aqui que praticamente a minha cidade nasceu e tentou sobreviver nos primeiros anos da sua periclitante existência. As velhas fotografias deste local revelam-nos um casario pobre, profundamente embrulhado, construído em madeira e zinco. Este material foi, nos finais do século XIX e princípios do seguinte, a base praticamente de todas as cidades africanas, nascidas repentinamente, nos alvores do colonialismo moderno. No antigo comando militar do Aruângua, as primeiras casas de zinco foram construídas pelo governo português, em 1892, para albergar as tropas da expedição a Manica, no seguimento das rivalidades anglo-portuguesas naquela zona. Depois generalizou-se, inevitavelmente. De tal forma que, nos anos 20 do século XX, ainda havia duvidas quanto às vantagens e desvantagens do uso do zinco ou da alvenaria. Foi necessária uma demonstração pormenorizada do director das Obras Públicas na Comissão Urbana, salientando fundamentalmente os seus benefícios do ponto de vista financeiro, para quebrar a campanha então existente a favor do primeiro destes materiais. A alvenaria começou, apesar das dúvidas, a ganhar terreno ainda na ultima década do sulo XIX. As primeiras construções deste tipo são feitas pelos particulares, como seja o caso da agência do Standard Bank (edifício ainda hoje existente), mas o armazém do Almoxarifado, construído em tijolo de betão, integra-se ainda nesta fase pioneira, já que a sua construção se iniciou em 1897, num local onde antes existiam algumas barracas de madeira e zinco, pertencentes ao governo. A instalação do almoxarifado na nova construção e a sua separação da Repartição da Fazenda só virá a ocorrer dois anos depois, após a construção dos mobiliários e outros equipamentos.

O almoxarifado esteve aqui instalado até 1903, altura em que virá a ser alojada provisoriamente a repartição dos correios. Anteriormente, esta última estava instalada numa velha casa abarracada, de madeira e zinco, que viria a arder em Janeiro de 1902, com o alastramento do incêndio no Beach Hotel. A esta situação juntava-se ainda o facto de se pretender colocar o Almoxarifado sob a dependência directa da Fazenda. Esta junção não se tinha efectuado ainda porque, no edifício da Fazenda, não existia espaço para a sua instalação. Numa fase inicial, os correios estiveram mal alojados mas, posteriormente, após a transferência do almoxarifado e a execução de algumas obras no armazém, pôde-se ali instalar as seguintes divisões: sala para o público, sala para a correspondência apartada em “boxes”, sala para a posta-restante e para encomendas postais e registos. Numa outra parte do edifício encontrava-se o gabinete do director, o arquivo e o depósito e, no restante, estavam ainda aquarteladas algumas praças da Guarda-Fiscal. Com a nova instalação, foram ainda adquiridas 300 caixas de ferro para a correspondência apartada, tipo alemão, permanentemente abertas ao público, ficando o recinto iluminado à noite e com uma sentinela permanente. E, durante alguns anos, foi considerada, “uma das melhores instalações dos serviços da Companhia de Moçambique”.
A partir de 1906, o director dos correios sugere que as “quatro portas voltadas para a nascente” sejam transformadas em janelas envidraçadas, pois nos dias de chuva as mesmas tinham de ser fechadas, privando a repartição de ar e luz. Mas propunha ainda uma modificação mais radical, com a ampliação do edifício em casa de habitação, construindo-se para isso um primeiro andar. As razões apresentadas pelo chefe daquela repartição prendiam-se com o facto do pessoal dos correios ser dos mais mal pagos no território de Manica e Sofala. Julgava este que podia reverter esta situação, dando-lhes casa ao mesmo tempo que se conservava o mesmo ordenado.Esta última sugestão nunca chegou a ser efectuada, apesar de esta ampliação se tornar inadiável, agora motivada pelo grande desenvolvimento que se tinha dado neste serviço público.
Os correios, que se tinham instalado aqui provisoriamente, mantiveram-se no armazém até 1929, altura em que se mudaram para uma casa alugada, situada no segundo andar do edifício Lacerda. Nessa altura, o velho armazém era já considerado “desprovido das condiç­ões higiénicas indispensáveis a uma repartição onde trabalham diariamente 50 indivíduos”, mas também porque já era olhado como inestético e de uma pobreza extrema.
A partir desta data podemos apenas levantar suposições sobre o que terá então acontecido. Provavelmente terá voltado à posse da Repartição da Fazenda, já que tinha sido construído propositadamente para os serviços do Almoxarifado. Pelo menos, na década de 60 do século XX, estava já entregue a estes serviços, ainda que não existisse ali ninguém. Penso que era apenas um armazém daqueles serviços e assim terá permanecido mesmo após a independência do país. Na década de 80, pude localizar ali os arquivos da antiga Repartição de Fazenda da antiga Companhia de Moçambique. Foi primeira e única vez que estive no seu interior. Mas é também desde aquela altura que se pretende dar um futuro mais condigno ao edifício, já que era então um dos mais antigos da cidade da Beira. O historiador Alexandre Lobato, então director do Arquivo Histórico de Moçambique, numa primeira tentativa de descentralização destes serviços públicos, pretendia instalar nele a delegação centro do Arquivo Nacional. Ficou apenas a ideia, já que nunca viria a concretizar-se.
A entrega do velho edifício do Almoxarifado à associação Casa do Artista, por decisão do Ministério das Finanças, veio repôr a justiça, garantindo-lhe um futuro condigno, ao mesmo tempo que se tornará num espaço cultural ao serviço dos beirenses. Uma nova etape começa agora na sua existência, após as obras de recuperação e transformação.
Texto de António Sopa, revista "Índico"

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Consegui
u, depois de muito esforço, uma concessão por 30 anos do ex-almoxarifado da Beira, edifício cuja construção se iniciou em 1897 (possivelmente o mais antigo edifício em alvenaria da cidade), agora em ruínas, que pretende restaurar para sua sede.

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