08/04/07

As incursões do mar

Ao princípio deste século, a praia da Beira, trecho que vai da Praia Nova ao Macúti, avançava algumas centenas de metros sobre a área que é hoje o mar. Ao largo do ponto onde assenta o Miramar e no prolongamento da rua que o ladeia a oeste, estava a árvore grande que servia de ponto de referência à navegação e que, nas cartas inglesas, tinha a denominação de «conspicuous tree». O cabedelo que vai presentemente da Praia Nova à ponta oeste do actual plano de urbanização, não existia. Quando foi escolhido o local para o Farol do Macúti (da Ponta Macúti, como era então denominado), inaugurado em 1904, julgou-se que este ficaria perfeitamente defendido de quaisquer incursões do mar, tal a extensão de algumas centenas de metros de areias altas, ou dunas, com vegetação, que o defendiam do lado sul.
Toda a área compreendida entre a Praia Nova e a zona leste do Macúti, parecia igualmente defendida e, se assim não fosse, não teriam sido construídos o antigo Farol da Ponta Gêa, a casa do Inspector Arnald, a de Heitor Morgado, a do padre Maxwell e, por fim, o Farol do Macúti, construções estas que, com largos intervalos, se al
inhavam ao longo do mar, separadas deste por aquelas centenas de metros de areias soltas, ou dunas, com vegetação.
No entanto, por 1907-1908, as incursões do mar começaram. Logo ao princípio, caiu a árvore grande, a «conspicuous tree», com grande desgosto dos navegantes e, desde então, até 1919-1920, as incursões foram contínuas e, pode dizer-se que, cada maré equinocial trazia novos estragos. Ruíram assim aquelas centenas de metros de defesa; e, ao mesmo tempo, ia-se formando um cabedelo no prolongamento da Praia Nova, para oeste. De certo modo, parecia haver grande deslocação de areias, porque, à proporção que as praias iam sendo corroídas, em toda a sua extensão, o cabedelo aumentava em comprimento e altura.
Por outro lado, a formação deste parecia obra providencial, porque se constituiu um quebra-mar e defesa da cidade, impedindo o batalhar forte das ondas do alto, contra a muralha. Estamos convencidos de que esta já não existiria, ou teria tido de ser reconstruída, se aquele batalhar não tivesse cessado.

Nas marés de águas vivas e, sobretudo, nas equinociais, a rebentação sobre a muralha oferecia um
espectáculo admirável e, ao mesmo tempo, assustador. Aquela rebentação incidia principalmente sobre o trecho que fica por detrás do actual edifício Paládio e sobre o ângulo que a muralha forma ao lado da antiga casa J. D. Martini. A cada choque, era a água atirada a dezenas de metros de altura em seguida o forte ruído e abalo, semelhantes aos de um bombardeamento. Ainda se encontram pela Beira alguns dos seus habitantes desse tempo e, decerto, se lembram do receio que havia de que o pequeno burgo de então viesse um dia a desaparecer sob a acção daquele batalhar das ondas.
Veio, pois, o cabedelo, obra providencial da natureza, a remediar o grande mal e perigo, fazendo de quebra-mar e evitando que a ondulação do largo viesse a desfazer-se sobre aquela defesa.
Mas, nesse tempo, outro mal havia, que era a entrada franca das águas pelo extremo sul da muralha. Por aí vinha a ondulação até às construções situadas à direita da actual Avenida da República, ameaçando, cerca de 300 metros, no prolongamento da muralha, obra esta que ainda hoje existe, quase soterrada, e que se denominava, ao tempo o «perré» da Ponta Gêa.
Foi útil porque quebrada a entrada violenta da ondulação; mas, mais útil ainda, foi o cabedelo que acabou também com m
ais esta ameaça.
Não havia técnicos na terra que pudessem determinar as causas da grande erosão da praia, o novo perigo que havia surgido, e recomendassem o necessário remédio. Fez-se obra por tentativas: pensou-se na defesa pelo sistema de esporões; construíram-se muretes com sacos de cimento perpendiculares e oblíquos à linha de água, etc. De tudo quanto ocorria se foi fazendo um pouco, mas a erosão avançava sempre e, no fundo da área que hoje é mar, ao largo da praia, devem encontrar-se essas defesas que não foram, talvez, suficientemente sólidas para oferecer a necessária resistência.
E as opiniões variavam, quanto àquelas causas. Afirmavam os marítimos conhecedores da costa que se estava operando qualquer mudança no curso das correntes, no Canal de Moçambique; diziam outros que as mudanças de «thalweg», no estuário, estavam a influir na entrada e saída das águas das marés e, daí, a erosão; finalmente, e por último, veio a observação colhida no Observatório, de que se havia alterado a direcção do vento predominante, o que estava a influir no movimento das águas, causador da erosão.
Seja como for, a maior das ameaças apareceu em 1919-1920, quando o mar chegou aos alicerces do Farol do Macúti. Reunidas as entidades competentes para o estudo do grave problema, foi resolvido proceder-se à construção imediata de um novo farol provisório, a cerca de 2 quilómetros ao norte do Macúti, e apear-se a lanterna do farol ameaçado. Esta segunda parte entrou logo em execução: foi construído um andaime do lado do farol, com a altura deste, e a lanterna foi apeada, com despesa que seria, hoje, de alguns contos. Havia, no entanto, quem ti
vesse a opinião de que era este o melhor expediente e que se deveria tentar, por todas as formas possíveis, a defesa da construção.
Acabava de ser suspenso o serviço do Farol à navegação e apeada a lanterna, quando chegou à Beira o comandante Raul Nunes Frade, engenheiro hidrógrafo, contratado naquela altura, para o Serviço da Companhia de Moçambique.
Posto ao corrente do grave problema, foi o Comandante Nunes Frade de opinião de que se deveria tentar nova defesa do farol e, assim, mandando rebocar para o local um dos velhos barcos que se encontravam abandonados no porto, fê-lo encalhar mesmo em frente daquela construção. Não tardou que as areias começassem a juntar-se e a almejada defesa fosse restabelecida. São passados 32 anos e ainda hoje se mo
stra que o expediente deu os mais lisonjeiros resultados. Escusado será dizer que a lanterna voltou para o seu lugar e o farol continuou, como ainda hoje, a prestar serviços à navegação.
Outros cascos foram, s
eguidamente, trazidos e encalhados noutros pontos da praia, entre o Macúti e a Praia Nova, sendo o resultado o mesmo, juntaram-se novamente as areias, impedindo a erosão. Prova isto à evidência que, como primeiro expediente, é este o processo de que é preciso lançar mão para evitar a repetição do perigo.
Muito bom serviço prestou à cidade aquele distinto oficial e, recordá-lo e dizer que se lhe deve um profundo agradecimento, não distante do que merece quem salva outro da morte.
Há alguns anos, recordando estes transes do passado com o ilustre oficial, dissemos-lhe que era necessário que a sua obra tivesse continuação: novos encalhes por toda a praia, de forma a consolidar a sua defesa, e permitir melhores obras no futuro. Esteve plenamente de acordo, e afirmou: «Sim, é preciso escorar a praia toda».
E quando não houvesse cascos de barcos, que se construíssem jangadas, de qualquer modelo tosco, mas sólido, que servissem para o mesmo fim: impedir a deslocação das areias e fazê-las juntar.
Vem este relato a propósito da Estrada Marginal. Há quem tenha criticado e condenado esta obra, com o fundamento de que, prejudicando a duna e sua arborização, prejudicava também a defesa da cidade contra o mar. Temos a impressão de que estão em erro. Dunas, muitas dunas, cobertas de vegetação, existiam em mil novecentos e oito, quando começou a acentuar-se a erosão, e todas elas foram tragadas pelo mar. As dunas só por si, no nosso caso, não são tudo e isso ainda agora se mostra no trecho desprotegido da praia que vai da Praça da Índia até ao Macúti, ao qual é preciso acudir.
São precisos os encalhes na própria praia, enquanto se não constroem esporões, muralhas ou outras obras adequadas. Vem do passado uma lição altamente aproveitável; cumpre não a esquecer.
E quanto à estrada marginal assentemos, com a verdade, que a obra é boa, oportuna e de valor turístico incontestável; assim o reconhece também o público, como se mostra pelo uso que faz dela. O que é preciso é melhorá-la, asfaltá-la e levá-la ao Macúti, logo que os recursos o permitam.
E, repetimo-lo, escore-se a praia toda, como muito bem recomendava o Comandante Nunes Frade.

por J. Oliveira da Silva
[Diário de Moçambique, ano II, nº 415, 28 de Fevereiro de 1952, p. 1 e 2]
texto enviado por António Sopa

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