Ao cantor Madala, lembrando Ponessa musi wango
Ao Pintinho, iluminando as andanças do passado
Porque seria que pelas águas estagnadas homens, mulheres e crianças passavam horas a fio, de dorsos curvados sob as cinturas, segurando latas cilíndricas sem fundo por onde metiam as mãos?
Eu apenas conseguia vê-los naquilo que supunha ser suas cogitações movidas pelos tempos coléricos e pestíferos. Parecia subsistir ali a sobrevivência. Mesmo parecia que os homens andariam a buscar ali as esperanças que tinham perdido, parecia ainda que as pessoas tentavam regatear umas esperanças que eventualmente teriam sobrado nas estagnadas águas. Até que alguém me dissera que andava equivocado, pois o pântano continha aquilo que meu ouvido percebeu tratar-se de um nome estranho: o mussopo ou ncone.
O esclarecimento por si não bastara. Que peixe seria aquele que se captura com latas sem fundo? Para melhor aclarar-me, afigurou-se-me necessário conhecer o "estranho bicho" que, conforme viria a saber, habita junto às faixas de rios salobros e ainda nos pântanos e lamas por alturas chuvosas e secas.
Um dia, os meus amigos Alexandre e João Nhabombo acabariam por me levar para o pântano que se formava após períodos chuvosos por detrás da Casa das Irmãzinhas de Caridade, na ex-zona da Fundação Salazar, no Macurungo. Uma vez aqui os tipos desataram a apanhar o "estranho bicho" a anzol, quando os outros convivas faziam-no com as referidas latas.
Levou bastante tempo até que visse um ncone a ser capturado. Cá deste lado de fora eu e meus amigos só víamos os pescadores palmilhando cada perímetro do charco. A gente contemplava os captores imergidos no pântano de dorsos inclinados, num ritual revestido de sepulcral silêncio por sua vez quebrado por movimentos a cada ondulação circular da água, com que se detectava e se localizava a presa, o que servia para espetar a armadilha sobre a área agitada. Era um exercício ritmado, em que se viam os protagonistas inclinando mais fundo e a meter a mão para dentro daquela armadilha a ver se apanhavam os peixes à mão.
O mussopo é um peixe, por assim dizer, incomum nessa classe de vertebrados, pois as suas barbatanas cobrem o dorso inteiro, prolongando-se até à cauda . E não só, de compostura e pele escorregadia, por não possuir escamas, o mussopo é deste modo difícil de apanhar à mão, correndo o captor o risco de ser violentamente atacado com uma feroz mordida que lhe pode custar a sua amputação.
Aliás, sendo a criatura feroz, nunca entendi o motivo que os levava a perseguir de forma acerada o "bicho" que detém a particularidade estranha de resistir não menos de três dias fora da água. Mas os protagonistas da faina evocavam o sabor da sua carne que diziam ser bastante apreciada, motivo porque lá pela Europa tornou-se uma espécie protegida, tal como se justificavam. E eu a sorrir da desculpa que então dava por esfarrapada, só agora acordei para a realidade.
Dizem que nesta fase a cauda contém micro-organismos essenciais à sua sobrevivência. Mas não me suporto a imaginar um "bicho" debaixo da terra com a cauda enterrada na boca.
Foi pois, esse, o meu primeiro ofício. Apanhar mussopo e cacanas, uma espécie de peixe de água salgada disponível nos canais do Chiveve. Aliás, verdadeiramente quem os apanhava (os mussopos) eram aqueles amigos que considerava bastante corajosos, enquanto o Djidja, outro amigo meu a viver em Durban, preferia pescar cacanas, que capturava comigo, na pesca desportiva, lá para as praias do Clube Náutico, Monumento dos Descobrimentos e Beira Terrace. Porém, admirava-me a habilidade e flexibilidade dos meus amigos que tiravam-nos das águas argilosas a anzol inventados a partir de alfinetes.
E quando não vendêssemos os mussopos, o bicho podia permanecer ao relento sem ser congelado. Era uma vantagem excepcional, ademais não poderíamos levá-los às geleiras dos pais pois sabíamos de antemão, tal daria sarilhos.
Enquanto não tivéssemos clientes que nos pagassem como deve ser, lá o pescado (mussopo) gozava os ares, refrescando-se ao sol ou à sombra. Tal como nos desse na real gana. Às vezes testávamos a resistência do bicho dando umas pedradas e açoutadas de vara. O bicho reagia dando gemidos semelhantes aos de um ser humano: "uff". Será por isso que alguém nos terá dito que não o devêssemos comê-lo porque o mussopo era uma reencarnação dos ancestrais. Aperfeiçoámos o nosso ofício quando descobrimos um freguês, esse que passou a levá-los a crédito de cinquenta centavos por unidade. O freguês jamais nos terá pago. Assoma assim uma dívida com juros que se viesse a liquidar hoje, atendendo às desvalorizações consecutivas que a moeda vem sofrendo desde então, resultar-nos-ia numas economias que dariam para comprar um apartamento.
Nós que pouco entendíamos de ciências ocultas até chegámos a acreditar que as plantas que emergem das tumbas são outras formas de reencarnação dos defuntos. É uma discussão que reservaria aos mais sabidos, embora ainda hoje a lembrar-me dos mussopos seja apossado pela impressão dos seus gemidos, que me pareciam os dos mortos a zangarem-se connosco, por sermos diabos em pessoas. Terá sido este facto que me levara uma vez a confessar-me ao padreca, pois vi-me atingido por manifesto sentimento de culpa, se bem que em toda aquela área onde os buscávamos os indígenas haviam usado para acoitar a alma dos seus.
O mussopo tem uma derme verde-cinzenta, que o tornava ainda menos visível a meio do lodo, o que nos dificultava ainda mais a pesca. Assumiu outra dimensão no meio da malta. E tornou-se este pescado o mascote de um jogador do clube de Belinho e Sérgio Sadique, hoje donos do Benfica do Macúti. Estou a falar do avançado Memba, o mais negro de todos os negros que alguma vez terei visto na vida. O Memba dificilmente se distinguia na penumbra crepuscular daquela tarde em que os adversários metiam bolas na nossa baliza e o tipo, como um mussopo, zás catrapuz surgia escorregadio e a correr e a fazer o gosto com o pé direito, após driblar o nosso guarda-redes.
Por Adelino Timóteo
Diário de Moçambique, Página Diálogo, 14 de Abril de 2007
Nota: O mussopo é um peixe da família dos murenídeos tais como a enguia, o congro e a moreia.
1 comentário:
Sou um amigo de longa data do Madala, pois iniciamos na musica na mesmoa altura em 1975 sóp que vim para Portugal, no entanto gostaria de reactar correspondencia com ele mas não sei como, poderia dar-me uma ajuda,quando se encontrar com ele, diria que recebeu um email do seu muito amigo Fernando Reis do Esturro. mailto fermareis@hotmail.com ou fermareis@gmail.com
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